SÃO LUIS – Se você teve a paciência de ler a parte 1 desse assunto, vai lembrar que comecei dizendo que nenhum político até o momento teve a coragem de mexer nas jabuticabas da segurança pública ou naquilo que chamo de “feridas” da segurança pública. Há uma razão forte para isso e não estou aqui para simplificar nada. Entretanto, essa razão, embora muito forte, não é republicana e nem atende ao interesse público. É uma razão meramente carreirista, que envolve interesses corporativistas de uma pequena (muito pequena mesmo) fração do serviço público que trabalha nos órgãos de segurança pública. Antes de eu dar o “nome aos bois”, preciso entrar na segunda ferida que tem de ser mexida, sem a qual esse país não vai conseguir enfrentar o grave problema da violência e impunidade que tanto prejudica a vida de nosso povo, principalmente do povo mais pobre que depende exclusivamente da segurança pública. Nesse sentido, terei de entrar no funcionamento das carreiras das polícias no Brasil, como a polícia civil e militar dos estados, a polícia federal e a polícia rodoviária federal. Então, seja paciente, vamos desenrolar esse carretel!
FUNCIONAMENTO DAS CARREIRAS POLICIAIS NO BRASIL
Comecemos pela polícia mais conhecida e que está no dia a dia da população: a polícia militar. A polícia militar é a única polícia no Brasil que está subordinada ao exército através do IGPM (inspetoria geral das polícias militares) um órgão do Exército, criado em 1967. Os constituintes entenderam por bem regulamentar a PM na Constituição de 1988. O policial militar está submetido a uma Justiça Militar (além da civil) e, se preso, é enviado a presídios especiais. Sem entrar no mérito do militarismo (que é um capítulo à parte a ser discutido posteriormente em outro artigo), a carreira da polícia militar tem uma divisão semelhante à carreira do exército: oficiais e praças onde cada um entra por uma janela diferente. Darei o exemplo da polícia militar aqui do meu estado, Santa Catarina, que considero uma das mais organizadas e bem treinadas do Brasil. Se você quiser ser um policial militar, há dois caminhos. O mais amplo é fazer o concurso para praça (iniciando como soldado) da polícia. Tens que ter ensino superior em qualquer área e entrar no curso de formação de soldados (CFSd) que dura nove meses. Terminando o curso, você sai como policial, na patente de soldado. Depois de 30 anos de carreira, você chega, no máximo, a subtenente. A segunda forma de entrada é através do curso de formação de oficiais (CFO), cujo requisito é ser formado em direito. Você sai como policial, na patente de aspirante. Depois de 30 anos, provavelmente você será coronel, cargo máximo na instituição. Portanto, a única polícia ostensiva dos estados, a polícia militar, tem duas portas de entrada, onde uma é para os praças e outra para os oficiais. Um sargento de 30 anos de polícia será comandado por um tenente de apenas 2 anos de polícia.
Na polícia civil e na polícia federal, ocorre a mesma coisa, ou seja, duas portas de entrada de maneira geral. Para quem tem nível superior em qualquer área (alguns estados estabelecem o ensino médio) pode entrar na polícia civil e na federal como agente. Após o curso de formação você será agente. Depois de 30 anos de carreira, o policial será…agente! Jamais vai comandar uma delegacia e muito menos poder comandar a instituição. A outra porta de entrada é para os que são formados em direito. Estes podem fazer concurso para o cargo de delegado de polícia e já entram mandando nos agentes, mesmo os de 30 anos de serviço. Como delegado, você vai chefiar delegacias e até mesmo pode chefiar a corporação como um todo.
Já dei aqui algumas pistas que esse negócio não tem como dar certo, não acha? Mas, vamos explicar isso direitinho, pensando nas “melhores práticas internacionais”.
CARREIRA ÚNICA NAS POLÍCIAS: APENAS UMA PORTA DE ENTRADA
Primeiro, precisamos lembrar que a ideia dos constituintes que escreveram a constituição de 1988 não tem nada a ver com o que vemos hoje. Tomo como exemplo, a polícia federal. O § 1º do artigo 144 da Constituição Federal diz que “§ 1º A Polícia Federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a…”. Veja que a ideia do constituinte originário era que a polícia federal fosse estruturada em carreira e não em várias carreiras como é hoje. Em nenhum país moderno do mundo existe o que existe aqui no Brasil: uma carreira específica de delegados, que entram por uma janela específica. Os comissários (o mais parecido com o delegado no Brasil) de polícia na França são os mais antigos e mais preparados entre os que entraram na polícia, bem como na Itália, que como todos os demais países não exigem formação em direito para essa função, visto que são originários dos quadros mais antigos da polícia. Em outros países como a Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos não existe nada parecido com o cargo de delegado como existe no Brasil. Todos entram por apenas uma porta e através da experiência, meritocracia, cursos, atingem a função máxima de chefes em suas corporações. Isso é praticamente uma unanimidade no mundo. Antes de continuar desenvolvendo esse assunto, vou propor uma atividade lúdica do tipo “imagine”,
Imagine um rapaz ou moça que entraram na faculdade de direito com 17 anos. Após cinco anos, já completados os seus 22 anos, presta concurso para o cargo de delegado de polícia federal. Passa, faz o curso de formação de alguns meses e entra no órgão pelo andar de cima, como chefe. Esse rapaz ou essa moça vão chefiar uma equipe de agentes, com profissionais que já trabalham há mais de 20 anos na corporação, formados nas mais diversas áreas do saber, visto que o requisito para ser agente é a formação superior em qualquer área. Esses agentes, por outro lado, por mais que sejam esforçados, por mais que tenham uma experiência profunda em seu trabalho, jamais poderão se opor a qualquer ordem desse incipiente delegado. Como dizem os jovens, “vai dar serto sim”! Vamos mais a fundo nesse nosso exercício de imaginação. Uma polícia tem suas coordenadorias, chefias em várias áreas. Aqui no Brasil, essas chefias são privativamente ocupadas por delegados. Todos eles formados em apenas uma área: direito. Tentem imaginar como é o ambiente criativo e de soluções dentro de uma corporação policial dessas. Imaginou? Ninguém formado em administração, marketing, engenharia, tecnologia da informação, sociologia, filosofia, educação física, letras, história, etc. Imagine o conceito anacrônico de gestão de uma corporação dessa. Mas, agora, vamos elocubrar mais ainda. Preparado? Agora vai ficar um pouco mais pesado o clima, pois você descobrirá coisas que podem te indignar. Tome seu antiemético e continue a leitura.
Tomando como exemplo a polícia civil de Santa Catarina, caso você faça o concurso para agente, seu salário inicial será aproximadamente 4 mil reais. Se você quiser fazer o concurso para soldado da polícia militar de Santa Catarina, receberá o mesmo salário aproximadamente. Após 30 anos nessas carreiras (PM e PC), você chegará a receber aproximadamente 12 mil reais. Trinta anos é uma longa caminhada até a aposentadoria, visto que, pelas regras da EC 103/2019, o policial civil se aposenta após 30 anos de contribuição e 55 anos de idade. Nunca você será chefe de fato. Chefiará um pequeno núcleo, equipe ou uma seção. Mas chefiar um batalhão ou uma delegacia, jamais. Nunca comandará investigações, jamais! Mesmo que você seja o sujeito mais capaz da delegacia. É assim que funciona. Agora, imagine se você entra pela “janela de cima”. Vamos lá?
Caso você seja bacharel em direito (não precisa ter OAB, ok?), você pode fazer o concurso para delegado ou oficial da PMSC. Bem novinho, ainda com aquelas marcas de espinha, você passa no concurso e pimba, virou chefe! Já entra, bem novinho (no caso de Santa Catarina) com salário de aproximadamente 18 mil reais. Após uns 15 anos, caso você não tenha feito nenhuma bobagem, você vai receber um salário de aproximadamente 26 mil reais mais todas as gratificações das funções de chefia, afinal, você é um delegado ou um oficial! Eu pergunto: o Brasil aguenta isso? Um rapaz, novinho, entrando através de um concurso, onde a capacidade de decorar leis e doutrinas é o método para ingresso em cargos importantíssimos e que, deles depende, a vida de outros policiais e a segurança do povo? Onde a experiência, a maturidade, e o próprio reconhecimento de seus pares entra nesse jogo? Mas, alguns farão indagações. Uma delas seria se é possível fazer isso no Brasil. Sem querer, o Brasil produziu um exemplo claro de um modelo de carreira única que sempre deu certo: a polícia rodoviária federal. Mas, lembre, isso foi sem querer. Vamos ver?
Caso você queira ser um agente da polícia rodoviária federal, você precisa ter um curso superior em qualquer área. Passando no concurso, você faz o curso de formação e após 3 meses você é um agente de terceira classe, ganhando aproximadamente 9 mil reais. Ali dentro, você vai ter que trabalhar na atividade finalística, ou seja, nas rodovias federais. Geralmente, vai para a fronteira, onde a PRF é recordista em apreensão de drogas e armas em todo o Brasil. Na PRF, o agente tem uma carreira, em que ele vai até agente classe especial, recebendo ao final da carreira aproximadamente 16 mil reais. Estes agentes de final de carreira são os chefes de delegacia, coordenadores, superintendentes estaduais, podendo ser até um diretor geral, função máxima na PRF. Ou seja, por ter apenas uma porta de entrada, as chefias serão preenchidas por gente com experiência e também formados nas mais diversas áreas do saber, trazendo grande benefício à gestão do órgão. Também quebra as guerras internas, visto que todos são oriundos da mesma origem e com a mesma formação básica policial. O chefe sabe o que é o trabalho operacional, conhece a equipe que ele chefia e sabe exatamente os cacoetes de cada um e com quem podem contar. Ademais, todos têm uma perspectiva que podem, um dia, serem chefes de sua delegacia, de sua superintendência estadual ou de alguma seção importante de policiamento ou administração. A maturidade, experiência e meritocracia fazem parte dessa carreira. Não à toa que a Federação Nacional dos Policiais Federais, entidade de classe que representa os agentes, escrivães e papiloscopistas da polícia federal, assevera que a PRF é um modelo de carreira policial única.
Diante disso tudo, já sabemos a solução e também já sabemos o problema. Com apenas um ato do poder executivo federal e estadual, o cargo de delegado pode ser extinto, sem nem precisar de aprovação do poder legislativo, visto que extinção de carreiras pode ser feita pelo executivo, conforme Decreto nº 3.151/1999.
Também podem os atuais delegados, visto que se sentem mais próximos de carreira jurídica (o que é um absurdo pois a atividade policial não é jurídica) do que da carreira policial (vocês nem imaginam o que eles tentaram colocar no texto da PEC 32), que sejam, portanto, reconhecidos como juízes de instrução e custódia. A figura do juiz de instrução e custódia é uma solução para um problema antigo pois passará a não existir mais a confusão entre o juiz que preside a produção de provas e o juiz que julga. Aliás, esse problema atual é um dos motivos para anulação das decisões da operação lava jato. Há até uma PEC de autoria do deputado Hugo Leal (PSD-RJ) nesse sentido (PEC 59/2015). Com relação à polícia militar, basta alterar o curso de formação, sem precisar de quaisquer extinções de cargos. Basta deixar apenas uma escola de formação para todos que entram e ampliar a carreira destes até coronel, em forma de pirâmide. A solução é bem clara e vai trazer grande economia aos cofres públicos além de fazer com que a segurança pública dê um salto de qualidade, eficiência, com base nos mais modernos critérios de administração pública no mundo. Mas, há duas pedras no caminho: o corporativismo dos atuais delegados e coronéis. Aí é questão de coragem. Por isso chamo de “dedo na ferida”.
*Por Alexandre Gonçalves, pastor da Igreja de Deus, Policial Rodoviário Federal, Diretor do SINPRF-SC e presidente do Movimento Cristãos Trabalhistas em Santa Catarina.
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