SÃO PAULO – Sheela Birnstiel é uma mulher indiana de 70 anos que toma conta de duas casas de repouso para idosos deficientes na Suíça. Mas o mundo a conheceu em sua outra “encarnação”, como Ma Anand Sheela, a personagem mais enigmática da série documental “Wild Wild Country”, lançada pela Netflix em 2018.
Sucesso no mundo inteiro, “Wild Wild Country”, contava, em seis episódios –de mais ou menos uma hora cada um deles– a saga improvável do controverso “guru do sexo” indiano Bhagwan Shree Rajneesh, mais tarde conhecido como Osho.
Nos anos 1980, Bhagwan deixou um ashram em Pune, no estado de Maharashtra, na Índia, e se mudou para uma comunidade utópica com seus seguidores nos Estados Unidos.
Rajneeshpuram foi construída em uma fazenda comprada por seus discípulos americanos no condado de Wasco, num deserto do estado de Oregon. A cidadezinha mais próxima se chamava Antelope, e seus cerca de 40 moradores, assim como o governo do Estado, entraram em um conflito ferrenho com os sanyassins, como são chamados os adeptos do Rajneesh. O embate virou um escândalo nacional na época.
E, no curso dos seis capítulos da série, Ma Anand Sheela surge como a personagem mais carismática de todas, de longe. Osho aparece pouco, já que ficou entre os anos de 1981 e 1984 numa fase de “comunhão silenciosa de coração a coração”. Ou seja, ele não falava. Como tinha um problema sério de coluna, passava a maior parte do tempo deitado, descansando.
Sheela conheceu Bhagwan aos 16 anos, apresentada por seu pai, ainda na Índia. Ela se apaixonou por ele e virou sua discípula, mas logo passou a ser sua assistente pessoal e segurança. Foi a grande responsável por organizar a mudança do guru da Índia para os Estados Unidos. Lá, ficou mais importante ainda, se transformando em porta-voz e principal estrategista da batalha entre os rajneesh e os oregonianos.
Novinha, bonita e boca-suja, Sheela xingava repórteres, ameaçava a população local, protegia Bhagwan e sua comunidade com unhas e dentes e, quando os moradores originais do condado ameaçaram vencer as eleições, o grupo orientado por ela tentou boicotar a oposição na marra, envenenando a comida de um restaurante por quilo popular no condado.
Não tem personagem de novela que chegue aos pés da complexidade de Sheela. Numa obra de ficção pareceria inverossímil demais, nenhum roteirista ousaria. No final de “Wild Wild Country” ela briga com o guru e foge de Rajneeshpuram. Ele decide voltar a falar e a xinga de ladra e prostituta, entre outras delicadezas. Sheela é condenada a 20 anos de prisão por tentativa de assassinato, escuta telefônica ilegal e fraude de imigração. Ficou detida 39 meses e foi liberada por bom comportamento.
Agora, a Netflix apresenta “Em Busca de Sheela”, procurando por Sheela, um documentário de quase uma hora dirigido por Shakun Batra, um cineasta de Bollywood. Ele e sua equipe a acompanham a uma viagem a Índia, seu país natal, ao qual ela nunca mais tinha voltado, desde que deixou Pune ao lado de Bhagwan.
A ocasião é uma turnê de entrevistas, mas não fica claro quem está pagando a viagem. Ela não tem nenhum produto para promover no momento, seu único livro, “Don’t Kill Him! The Story of my Life with Bhagwan Rajneesh”, foi lançado na Índia em 2013, muito antes da estreia de “Wild Wild Country”.
Sheela está animada com a viagem e é tratada na Índia como um ícone feminista, sua presença sempre um espetáculo. Sua primeira entrevista é para Karan Johar, um Fábio Porchat local, que fez enorme sucesso com o programa “Koffee with Karan”, em que entrevistava, em tom de brincadeira, os grandes nomes de Bollywood. Hoje em dia Karan é ele mesmo um dos diretores mais famosos de Bollywood, e sua produtora, Dharmatic Entertainment, é uma das que assina este documentário.
O filme não chega a revelar grandes intimidades de Sheela, mas não deixa de ser curioso. Ela parece menos briguenta hoje em dia, mas não virou uma velhota boazinha. Na conversa com Karan, diz que era apaixonada por Bhagwan e ele por ela, mas que nunca fizeram sexo. “Seus olhos eram provavelmente mais bonitos que seu pênis”, afirma.
Em tom desafiador, refuta as onipresentes perguntas sobre seus crimes, seus arrependimentos e sua redenção. Nega que tenha participado do envenenamento dos moradores do condado de Wasco, diz que mandou instalar a escuta no quarto de Bhagwan por segurança, com o consentimento dele, e que a imigração do grupo não foi fraudulenta, todos tinham os vistos necessários. Afirma que as pessoas teimam em a ver como a criminosa que ela nunca foi. Mas não faz questão de dar todas as respostas e esclarecer todas as dúvidas a seu respeito. Tem um talento todo especial de não desviar de nenhum assunto sem dizer nada relevante.
Também não está no filme a explicação de como aquela garota agressiva e ambiciosa dos anos 1980 virou uma cuidadora de idosos deficientes num dos países mais caros do mundo. Sabemos que ela adotou uma filha, que só conhecemos por voz num telefonema, e que tem um neto. Não tem mais nenhuma religião, não acredita em mais nada além de “estar presente”.
Termina o documentário afirmando que está começando a se preparar para sua partida e que prefere essa atitude a negar a morte.
Em seu quarto e em seu escritório, na Suíça, ainda há fotos de Osho nas paredes, e ela conta que, um ano depois de a xingar violentamente, o guru disse que não conseguiria ter feito nada do que fez se não fosse por ela.
Os dois nunca mais se encontraram. Osho foi preso quando tentava fugir dos Estados Unidos num avião alugado em 1985 e morreu em 1990, de volta ao seu ashram em Pune, o Osho Meditation Resort, que existe até hoje mas está fechado no momento por causa da pandemia.
O interesse e a curiosidade a respeito de Sheela não serão saciados por esse documentário. Mas tem mais coisa vindo aí. Além do curta “Wild Wild Country: What Happened to Sheela?”, produzido pela BBC, que pode ser visto no YouTube, foi anunciada uma adaptação da história de Osho e Sheela produzida pela Amazon Studios, com Priyanka Chopra Jonas no papel da nossa anti-heroína favorita.
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EM BUSCA DE SHEELA
Onde: Na Netflix
Classificação: 14 anos
Produção: Índia, 2021
Direção: Shakun Batra
Avaliação: Regular
BNC Cultura