SÃO PAULO – De acordo com o balanço de dados colhidos pelo Disque 100, canal de denúncias relativas a casos de violação de direitos humanos, o Brasil teve 175 mil casos de exploração sexual de crianças e adolescentes entre 2012 e 2016, o que significa quatro casos por hora. Em relação ao tráfico de pessoas, o Disque 100 já mapeou este ano 14 casos até julho. Já o Disque 180, canal destinado a receber denúncias de casos de violência contra a mulher, registrou 102 ocorrências apenas em 2018, de acordo com o Ministério de Direitos Humanos.
Exploração no Pará
No entanto, os números representam apenas os casos que chegaram ao conhecimento do canal, o que indica subnotificação. Segundo a ativista Rebecca Souza, integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil (GASC) da Organização das Nações Unidas para Mulheres (ONU Mulheres), não existem programas eficientes para combater o fenômeno no país. Souza atua no Pará, segundo estado com maior número de exploração sexual infanto-juvenil.
“Tradicionalmente a região Norte é uma das mais afetadas, tanto com a questão da exploração sexual quanto pelo tráfico de mulheres. A rota do tráfico toda é aqui pelo Norte, pelo Pará. O Brasil é o quarto país em casamentos infantis, o sexto em exploração sexual e o terceiro na questão do tráfico de mulheres. O que estamos fazendo para combater isso? Não existe até hoje nenhum plano de nenhum governo que tenha combatido diretamente essa questão, principalmente aqui no Norte. Temos coletivos de mulheres e iniciativas de instituições como a ONU, mas não vemos isso sendo debatido”, afirma.
Souza relatou a questão das meninas “balseiras”, que vivem em locais próximos à Ilha de Marajó, no Norte do estado, região com um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do País. As meninas são levadas de barco até as balsas, que realizam trabalhos marítimos, e são exploradas sexualmente em troca de comida ou dinheiro. Além disso, ela relatou a rota de tráfico dos garimpos e da construção de grandes obras na região.
“Na maioria das vezes, o primeiro passo é levar as mulheres para o garimpo, depois algumas vão para a Europa, mas a maioria das que saem do país são as mulheres transexuais. Algumas realmente estão indo acreditando em uma questão de trabalho, chegam lá e é prostituição.
Também há vários relatos de mulheres que foram sequestradas até mesmo na rua. Depois da construção de Belo Monte, por exemplo, a gente teve 60% de aumento de exploração infanto-juvenil. Muitas vezes, o próprio governo é omisso ou causador dessa questão, no momento em que constrói uma grande obra mas não se atenta para os impactos sociais que ela pode ter”, denuncia.
De acordo com o psicólogo Antônio José Ângelo Motti, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e ex-coordenador do projeto da Estratégia Regional de Enfrentamento ao Tráfico de Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual no Mercosul (PAIR), a situação no Brasil é preocupante. Motti relata que os compromissos assumidos por meio do relatório final do programa, assinado em 2013, não foram cumpridos desde então.
Descaso governamental
“Hoje, não tem nenhuma mobilização a partir de uma estratégia nacional de proteção às crianças nas regiões de fronteiras. As legislações não foram alteradas para dar cobertura a essas ações. Para mim é muito preocupante, porque é um recurso enorme que foi gasto, seja financeiro, social ou institucional, milhares de pessoas nas 15 cidades onde o programa foi desenvolvido, para um produto estático. Então é um quadro de total negligência das autoridades nesse sentido, elas deixam de cumprir suas obrigações”, analisa.
O projeto apresentava propostas de trabalho para as cidades fronteiriças do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, no âmbito da agenda da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, e trazia diretrizes, como o comprometimento dos governos nacionais na mobilização de políticas públicas, estimulação de campanhas conjuntas, divulgação de canais de denúncia e a implementação de sistemas de gestão de dados sobre o tráfico de crianças e adolescentes.
“A partir do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff isso foi totalmente esquecido, a partir de 2014. Com o governo Temer isso não foi recuperado também. Os governos já não estavam tão preocupados com os direitos humanos, principalmente de crianças e adolescentes. Houve uma queda acentuada no nível do status designado para esse campo das políticas públicas, isso foi um desprestígio muito grande, de tal forma que não foi monitorado pelas autoridades, nem pelos dirigentes. Infelizmente vimos esse processo de esvaziamento total da importância da agenda de
Direitos Humanos nos governos”, opina.
O Brasil também é signatário, desde 2014, do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, conhecido como Protocolo de Palermo. Desde 2006, o país já teve três Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, sendo que o último corresponde ao Decreto 9.440, publicado no Diário Oficial da União, em 3 de julho deste ano. Destinado aos próximos quatro anos, o programa traz 58 metas destinadas à prevenção, repressão ao tráfico dentro do território nacional e responsabilização dos autores.
A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas é comandada pelo Ministério da Justiça (MJ). Contatada, a coordenadora da área não pode se pronunciar até a publicação da matéria, mas ressaltou que não existe nenhuma programação governamental para a data do 23 de setembro, porque o Ministério trabalha apenas com o Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, celebrado no dia 30 de julho.
De acordo com Rebecca Souza, a partir de janeiro de 2019, a ONU Mulheres implementará a campanha #ElaDecide, referente ao combate à exploração infanto-juvenil, com enfoque no norte do Brasil.
Fonte: Brasil de Fato
BNC Geral