BRASÍLIA – A capital federal se tornou, aos olhos do mundo, uma terra sem lei neste domingo (8). Milhares de apoiadores extremistas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) invadiram e depredaram as sedes dos três Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), espalhando terror em Brasília. O Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o STF (Supremo Tribunal Federal) foram alvos de vandalismo, destruição e saque – tudo sob a inação das forças de segurança.
Cerca de 4 mil bolsonaristas participaram do ato golpista, que contestava a vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2022 e pedia intervenção militar. Parte do grupo já estava acampada em frente ao quartel-general do Exército – mas a maioria dos terroristas chegou à capital em caravanas, vindas de todas as regiões do País. Ao menos 170 ônibus fretados se deslocaram até Brasília desde sexta-feira (6).
A segurança nas vias públicas da Esplanada dos Ministérios é uma responsabilidade da Polícia Militar local (PM-DF), que é subordinada ao Governo do Distrito Federal (GDF). Diante das movimentações nos últimos dias, as autoridades chegaram a solicitar, para o final de semana, um plano especial de segurança ao governador Ibaneis Rocha (MDB). Uma das recomendações era a de bloquear o acesso dos bolsonaristas à Esplanada dos Ministérios. Nada foi feito de especial.
No caso do Palácio do Planalto, sede do governo federal, sua segurança e proteção cabem a duas forças vinculadas ao Exército – o Regimento de Cavalaria de Guarda e o Batalhão da Guarda Presidencial (também conhecido como Batalhão Duque de Caxias). Os dois órgãos respondem ao Comando Militar do Planalto, que responde ao comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda.
Passadas quase 24 horas do início das ações terroristas em Brasília, ainda sobram questionamentos à atuação das forças de segurança, especialmente da PM-DF e do próprio Exército brasileiro. Antes de ser afastado, Ibaneis chegou a gravar um vídeo em que pede desculpas a Lula e a outras autoridades. O Exército, por sua vez, não se pronunciou.
Houve, ainda, falhas do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e até do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República. A rigor, os atos golpistas deste domingo não estavam sob sigilo. À convocação dos protestos nos grupos bolsonaristas no Telegram e no WhatsApp, sobreveio uma ampla divulgação nas redes sociais. A despeito dessa publicidade, o Sisbin e o GSI ou não identificaram o risco de invasões, ou também pecaram pela negligência.
Prisões e apreensões
Graças à reação liderada pelos presidentes da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e do STF, Alexandre de Moraes, o ataque golpista foi revertido ainda no domingo: 40 ônibus foram apreendidos e 260 terroristas foram detidos em flagrante. Além disso, Lula decretou intervenção na segurança pública do Distrito Federal até 31 de janeiro, enquanto o STF determinou o afastamento do governador Ibaneis Rocha por 90 dias.
Além das prisões em flagrante, 1.200 bolsonaristas foram detidos na manhã desta segunda (9) e conduzidos à superintendência da Polícia Federal. Eles podem ser acusados de uma série de crimes, como dano qualificado, crimes contra o patrimônio cultural, associação criminosa, terrorismo, atentado contra o Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Se houver provas de que as invasões foram premeditadas e deliberadamente antidemocráticas, a pena pode chegar a 30 anos de reclusão. Empresários que financiaram os ataques também estão sob investigação e devem ser corresponsabilizados.
Os fatos de ontem demonstram que houve omissão de autoridades e uma grande falha de segurança que permitiu as invasões aos Três Poderes. Ao pedir o afastamento do governador Ibaneis Rocha, Alexandre de Moraes não poupou críticas ao GDF. Segundo ele, o secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson Torres, mostrou “descaso e conivência” com os atos golpistas. Ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro, Torres foi exonerado ainda no domingo.
Já a Ibaneis foi atribuída uma “conduta dolosamente omissiva”. O governador, em suas declarações públicas, minimizou o caráter antidemocrático das manifestações. Pior: ele “ignorou todos os apelos das autoridades para a realização de um plano de segurança”. Se o acesso dos terroristas à Esplanada dos Ministérios estivesse proibido, as sedes dos Poderes não seriam atacadas. Mesmo que volte ao cargo daqui a 90 dias, o governante deve sofrer um processo de impeachment por crime de responsabilidade.
No caso do Exército, resta saber por que o Batalhão da Guarda Presidencial não estava de prontidão para enfrentar uma situação que, ao longo do domingo, se tornava cada vez mais previsível. Afora as ameaças feitas durante a semana, os terroristas só invadiram o Planalto depois de entrar no Congresso e no STF. E é praxe haver o reforço da segurança do Palácio do Planalto sempre que ocorrem manifestações em Brasília.
“Se a Polícia Militar deixou passar os 170 ônibus que chegaram ao Distrito Federal com os invasores, o Exército não poderia ter falhado em impedir que eles chegassem ao gabinete presidencial e depredassem o Palácio do Planalto. Faltou comando para movê-los no cumprimento de suas funções”, resumiu a jornalista Maria Cristina Fernandes, no Valor Econômico. “Os invasores já dominavam o palácio presidencial quando as forças do Comando Militar do Planalto resolveram reagir.”
Fim dos acampamentos
O domingo de terror exige respostas de curto, médio e longo prazo. Num primeiro momento, o decreto de intervenção federal assinado por Lula e a decisão do STF de afastar o govenador Ibaneis Rocha foram eficazes, culminando no restabelecimento da ordem pública em Brasília. Além dos ônibus apreendidos e dos terroristas presos, a reação das autoridades incluiu a desocupação do acampamento golpista em frente ao QG do Exército, em Brasília – todos os golpistas foram retirados do local.
A reunião de Lula com os governadores, nesta segunda-feira, deve definir uma agenda comum de ações contra atos terroristas. Por determinação do STF, governos estaduais e municipais devem esvaziar acampamentos golpistas próximos a quartéis. “O Pará é o primeiro estado do País a cumprir a decisão do ministro Alexandre de Morais. O acampamento localizado em frente ao Quartel do Exército, em Belém, já foi desmontado”, anunciou, nesta manhã, o governador Helder Barbalho (MDB-PA). Na semana passada, uma operação deflagrada pela Prefeitura de Belo Horizonte também pôs fim a um acampamento.
Além disso os atos deste domingo revelam a urgência em se reestruturar um sistema de inteligência para monitorar atos antidemocráticos e que atentam contra o Estado Democrático de Direito. Num mundo marcado pela guerra híbrida, a Inteligência pautada pela defesa da soberania, pela defesa do interesse público e da democracia é uma questão estratégica para prevenção desse tipo de terrorismo.
A ação do governo federal e do STF vai permitir a identificação e responsabilização em massa não só dos terroristas que foram a Brasília – mas também de líderes e financiadores do bolsonarismo. O repúdio generalizado aos atos golpistas, somado à ausência de Jair Bolsonaro – que está nos Estados Unidos –, provoca um isolamento ainda maior do movimento antidemocrático. Sem contar a desmobilização crescente dos acampamentos golpistas.
A indignação com o terrorismo que tomou conta de Brasília também foi manifestada com declarações contundentes em apoio ao Lula, vindas de líderes como Joe Biden (EUA), Vladimir Putin (Rússia) e Emmanuel Macron (França), evidenciando que a comunidade internacional está ao lado do governo brasileiro. Internamente, o Legislativo e o Judiciário também demarcaram posição pró-Lula.
Já Bolsonaro, ainda que tenha lançado uma nota para tentar se livrar de qualquer associação com as invasões em Brasília, sai do episódio com a imagem ainda mais arranhada. Após os atos golpistas deste domingo, cinco congressistas dos Estados Unidos pediram a extradição do ex-presidente ao Brasil. “Os EUA devem parar de conceder refúgio a Bolsonaro na Flórida”, afirmou a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York. Para o também deputado democrata Joaquin Castro, do Texas, o ex-presidente “está se escondendo da responsabilidade por seus crimes”.
A postura dúbia de Bolsonaro tem potencial, ainda, para prejudicar sua situação jurídico-institucional. Só no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), há 30 ações que podem torná-lo inelegível. O STF, por sua vez, tem mais elementos agora para responsabilizar Bolsonaro no inquérito das fake news. Novas ações contra o ex-presidente são esperadas nas duas Cortes. Para aliados ouvidos pela colunista Bela Megale, do jornal O Globo, “a situação de Bolsonaro ficou delicadíssima”.