ESTADOS UNIDOS – “Era Uma Vez em Hollywood”, o livro, abre com uma longuíssima conversa entre o ator Rick Dalton e o agente Marvin Schwarz, em que eles discutem os rumos da carreira do primeiro e a possibilidade de ele ir gravar na Europa. São vários minutos dedicados à conversa, lenta, cheia de detalhes e verborrágica, para a qual grandes estúdios certamente torceriam o nariz. Tanto que ela está presente numa versão simplificada e encolhida em “Era Uma Vez em Hollywood”, o filme.
Os motivos para a existência da romantização do longa de 2019 aparecem logo de cara. Quentin Tarantino, o diretor, parece estar muito mais à vontade na versão de papel e tinta -ou PDF, que seja- para se alongar em aspectos pouco dinâmicos e visuais da trama sobre um antigo astro da televisão que passa por uma crise na carreira.
Tanto que, em conversa com a Folha, ele reafirma o desejo de se aposentar em breve do cinema, dizendo que é à literatura que ele pretende se dedicar depois disso. “Isso é algo que eu gostaria muito de fazer, experimentar com os livros”, diz o cineasta, descontraído, em conversa por telefone.
Lançado no fim do mês passado no Brasil, o livro “Era Uma Vez em Hollywood” é uma expansão da versão cinematográfica da obra, que acompanhou o ator vivido por Leonardo DiCaprio e também seu dublê, Cliff Booth, personagem que garantiu um Oscar a Brad Pitt, na Los Angeles dos anos 1960.
Ambientado às vésperas do assassinato da atriz Sharon Tate -esta interpretada por Margot Robbie-, pela seita sanguinária liderada por Charles Manson, o longa versava sobre o fim da Era de Ouro do cinema americano e brincava com a ascensão dos spaghetti western -os filmes de faroeste feitos na Itália.
“As coisas estavam mudando em Hollywood mais rápido do que em qualquer outro momento, e isso pegou todos de surpresa. Esse era um aspecto que me interessava muito e que me motivou a escrever o roteiro e, agora, o livro”, diz Tarantino. “Há toda uma geração de atores que é fruto dessa transição. E se você dirigisse de uma ponta à outra de Los Angeles, naquela época, você notaria que a cidade também estava mudando.”
O período foi reconstituído com imensa atenção aos detalhes nas telas, em 2019 -tanto que o longa abocanhou também o Oscar de direção de arte-, algo que se repete agora no livro, mesmo que este não tenha elementos visuais à disposição.
Podem dizer que este seria um verdadeiro desafio para um cineasta como Tarantino, que pesa a mão nas cenas gráficas de violência e que confia cegamente na trilha sonora para ajudá-lo a cativar e impactar o público. Mas ele diz que o processo foi muito mais fácil do que pensava.
“Provavelmente as coisas mais violentas que eu já vi foram em livros, principalmente em romances de faroeste ou de terror. Quando o autor faz um bom trabalho descrevendo o que acontece, é tipo ‘puta merda’. Quando você vê um filme, você se pergunta o tempo inteiro como aquelas coisas são feitas. Mas, lendo um livro, seu cérebro faz todo o trabalho -é o único lugar onde os efeitos especiais funcionam perfeitamente”, diz
Este é o primeiro livro de Tarantino, que assinou um contrato para um par de publicações com a americana HarperCollins. O próximo projeto, “Cinema Speculation”, conta, não será ficcional. Ele pretende se debruçar sobre o cinema dos anos 1970 e dividir com os leitores reflexões, opiniões e curiosidades sobre a produção do período, tudo pelo olhar de “um dos diretores mais celebrados do cinema e o seu mais devoto fã”, anunciou a editora.
É no meio literário que Tarantino vai se refugiar em breve, depois que finalizar seu projeto de lançar dez longas e se aposentar da cadeira de direção -“Era Uma Vez em Hollywood” é o seu nono, já que o primeiro e o segundo volumes de “Kill Bill” valem por um único filme.
Ele acha pretensioso já se considerar escritor após um único romance, mas confessa que o plano parece bom. A ideia é sair de cena dentro de alguns anos para se dedicar a outras romantizações -“Cães de Aluguel” se apresenta como uma possibilidade-, histórias originais e até mesmo ao teatro.
Não que no cinema ele não tenha conquistado um lugar de liberdade artística relativamente alta, mas as expectativas e as obrigações nas páginas são menores do que nas telas, acredita. “Um filme envolve muitos dólares e muitas pessoas trabalhando. É um investimento artístico gigantesco. Por outro lado, um livro trabalha com números muito menores, então se você ler e gostar, ótimo, se detestar, foda-se.”
Nesta estreia literária de Tarantino, personagens menores no cinema ganham novas e interessantíssimas camadas, como a própria Sharon Tate. À época da estreia, muitos criticaram o filme por dedicar poucas falas à atriz e por diminuí-la ao papel da loira bonitinha em busca da fama.
No livro, entendemos melhor sua trajetória rumo a Hollywood e o casamento com o diretor Roman Polanski.
No final dele, aliás, não espere a catarse cinematográfica protagonizada por Pitt e seu pitbull e DiCaprio e seu lança-chamas, que impedem que o clã de Manson assassine Tate, reescrevendo a história. O desfecho nas páginas é outro, mais comedido -mas um que Tarantino diz ter sido uma alternativa imaginada inicialmente para o próprio longa.
Outro personagem que ganhou mais espaço em “Era Uma Vez em Hollywood” foi Cliff Booth, que agora tem seu passado como veterano da Segunda Guerra explicado, bem como a morte suspeita de sua própria esposa. Nas páginas ele é fã de filmes europeus e asiáticos, especialmente de Akira Kurosawa, em oposição a Rick Dalton, que acredita que cinema de verdade é Hollywood.
Mas Tarantino conta que esse novo Cliff não é exatamente um cinéfilo -ele apenas acredita ser, mas não entende tão bem assim o fazer cinematográfico. Logo ao ser introduzido, ele é rápido ao disparar que “Antonioni é uma fraude”.
“Esse é um personagem que só funciona tão bem no filme justamente porque ele é um enigma. Muito é apresentado e pouco é explicado. Para o livro, achei que seria interessante conhecê-lo melhor. Diferentemente dele, eu sou um cinéfilo de verdade e posso até concordar com algumas coisas que ele diz, mas por razões diferentes”, diz, fugindo das críticas ao companheiro italiano, diretor de “Blow-Up – Depois Daquele Beijo”.
Na vida real, quem vem recebendo críticas é o próprio Tarantino, por causa de sua abordagem para Bruce Lee em “Era Uma Vez em Hollywood”, considerada racista por alguns e ainda mais problematizada com o lançamento do livro. Shannon Lee, filha do ator, disse recentemente estar “cansada de homens brancos”, que não sabem quem de fato era seu pai.
O cineasta diz não querer falar sobre o assunto, mas reafirma o que já disse em outras ocasiões: “Nunca foi minha intenção antagonizar a família dele ou fazer parecer que eu odeio o Bruce Lee, porque eu não o odeio”.
Tarantino sempre concebeu os próprios roteiros, então sua história com a escrita não é tão nova quanto este romance. Suas duas estatuetas do Oscar, afinal, não são pelo seu trabalho como diretor, mas pelo de roteirista. Mas cinema é sua verdadeira paixão e, mesmo se de fato se aposentar, ele pretende manter a intimidade de sua relação com o meio.
Tanto que o cineasta comprou, na semana passada, mais um cinema histórico de Los Angeles. “Ser exibidor é legal”, ele diz, e funciona muito mais como um hobby do que como uma ocupação ou investimento. Ele não é fã das plataformas de streaming -algo que parece óbvio para alguém que ainda filma em película- e acredita que há espaço para as salas tradicionais, desde que elas ofereçam algo que motive o público a sair de casa.
“Eu não acho que nós, cineastas, necessariamente temos uma obrigação em comprar cinemas e mantê-los abertos. Eu faço isso porque gosto, gosto de proporcionar esse tipo de experiência para as pessoas”, afirma. “Eu não sei como será o futuro, mas definitivamente ainda há mercado para os cinemas.
ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD
Preço R$ 49,90 (560 págs.); R$ 34,90 (e-book)
Autor Quentin Tarantino
Editora Intrínseca
Com Informações da folhaexpress
BNC Cultura