SÃO PAULO – Entre as habilidades especiais dos super-heróis do século 21, o poder de monopólio de mercado parece ser um dos mais almejados pelos seus criadores.
No ano anterior à explosão da pandemia que fechou os cinemas, o de 2019, “Vingadores: Ultimato” se tornou a maior bilheteria do mundo. No fim de semana em que estreou nos Estados Unidos, 90% de todos os ingressos de cinema foram comprados para o longa da Marvel. Por aqui, o filme chegou a ocupar 80% das salas brasileiras.
Agora é a vez da Netflix tentar a sorte nessa seara. Em 2017, a empresa de streaming comprou a editora de quadrinhos Millarworld, do quadrinista britânico Mark Millar, que conta com um universo fictício de 20 franquias diferentes. A primeira delas a ser exibida será “O Legado de Júpiter”, transformada em série, que estreia nesta semana.
O criador da Millarworld, que teve passagens pela Marvel e pela DC e já teve obras como “Kickass” e “Kingsman” adaptadas para o cinema, não descarta um futuro em que suas franquias tenham uma força comercial equiparável à da Marvel, no formato audiovisual.
“O caminho das pedras que aprendemos com a Marvel foi juntar o seu melhor material com os melhores profissionais criativos que você conseguir encontrar. É essa mesma estratégia que aplicamos aqui”, diz Millar.
Mas esse avanço de grandes franquias de HQ em direção a filmes e séries não pode resultar num mercado ainda mais oligopolizado? “O que eu acho que isso faz é trazer dinheiro para os estúdios. Com isso, os estúdios podem investir em mais produtos audiovisuais”, responde o quadrinista.
Mesmo que sua obra esteja sendo adaptada para o streaming, Millar faz uma analogia com as salas de cinema. “Uma grande rede de cinema é a melhor amiga do cinema independente”, diz Millar. “Quando eu era criança, os cinemas tinham três salas, no máximo. Então, se você tem um pequeno filme independente, você não teria chance de entrar numa dessas salas. Mas, se todo mundo está indo ver um filme da Marvel, da DC ou um ‘Transformers’, provavelmente haverá mais três telas passando outros tipos de filme. Então acho que tem sido muito bom para todos.”
Segundo ele, os blockbusters de super-herói também têm sido um catalisador para que as pessoas, em plena era de ouro do streaming, cultivem o hábito de assistir a filmes nos cinemas. E, com isso, “percebem que é uma experiência tão boa que continuam indo para ver outras coisas”.
Nos quadrinhos ou nos filmes e séries, aliás, já faz algum tempo que não é possível dizer que histórias de super-heróis se limitam só a homens adultos de collant trocando socos com vilões de pouca profundidade dramática.
“O Legado de Júpiter” conta a história de um grupo de heróis, a União, que chega à maturidade num momento em que o mundo passa por mudanças radicais, tanto na cultura quanto na política, gerando um forte conflito de gerações.
Esse grupo de super-heróis respeita, sem abrir exceções, um código de conduta -não se envolvem com política e não executam seus inimigos em batalhas, nem mesmo em legítima defesa. O nome de guerra do protagonista revela muito sobre o personagem -ele é o Utópico.
Quando o filho de um casal de heróis consagrados acaba matando um supervilão numa batalha, quebrando o código de ética, os valores da União são abalados. A sociedade em que vivem também parece ter mudado, já que uma pesquisa revela que 78% dos americanos veem a execução do vilão como algo positivo.
Outro ponto de destaque na história é a relação de Utópico com sua filha. Em vez de seguir os passos dos pais e combater o crime, Chloe escolhe trabalhar como modelo e encher o nariz de cocaína. O seu pai, um grisalho homem de família e temente a Deus, não gosta nada do estilo de vida libertino da filha, o que gera uma porção de conflitos entre os dois.
“Estamos falando de um cara que pode voar na velocidade da luz, mas não consegue se entender com a filha de 20 anos”, diz o ator Josh Duhamel sobre o personagem que interpreta, o Utópico. “A história é sobre família mais do que qualquer outra coisa. E é disso que mais gosto nessa série.”
Ainda que o drama familiar seja fundamental para “O Legado de Júpiter” e tantas outras narrativas vindas de HQs se revelem profundas, ainda há muita gente que tem um pé atrás em relação a esse tipo de história.
Martin Scorsese disse em 2019 que filmes como os da Marvel não poderiam ser considerados cinema de verdade. Francis Ford Coppola foi além e afirmou que filmes de super-heróis são desprezíveis. “Scorsese e Coppola disseram isso antes de terem visto ‘O Legado de Júpiter'”, brinca o quadrinista Mark Millar.
Segundo ele, essas falas têm a ver com diferenças entre gerações, que foram expostas a diferentes referências culturais que moldaram seu olhar.
“Você tem que lembrar que antes de 1969, histórias em quadrinhos eram vistas como uma mídia infantil. Algo aconteceu no início dos anos 1970 e claramente nos anos 1980, que isso passou a ser visto como uma forma de arte, uma combinação de escrita e desenho, duas formas de arte muito válidas, que quando você as junta, você tem o gibi”, diz Millar.
“Coppola e Scorsese têm 80 anos, suas influências são a nouvelle vague francesa e clássicos como os de John Ford, então é claro que eles estariam menos interessados em super-heróis. Eles não cresceram com as referências culturais como Allan Moore [criador de ‘Watchmen’] e Frank Miller [‘Sin City’] e todas as coisas com as quais a minha geração cresceu”, diz Millar.
“Realmente respeito a opinião deles, acho que se alguém tem uma autoridade para dar uma declaração sobre cinema são esses dois caras, são gênios, mas eu também posso entender por que isso não os atrai.”
BNC Cultura