Candidato a presidente pelo PT em 2018, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad diz que há dois anos já previa a ascensão da “extrema-direita” no país, mas que apostava na eleição do governador eleito João Doria (PSDB), com um “PSDB bolsonarizado”. Em sua primeira entrevista após a eleição, Haddad defende o PT das críticas de aliados e do ex-candidato Ciro Gomes (PDT) e afirma que o país vive um sistema híbrido, em que o autoritarismo cresce dentro de instituições democráticas.
“Eu imaginava [há dois anos] que o [João] Doria, que é essencialmente o Bolsonaro, fosse ser essa figura [que se elegeria presidente]. Achava que a elite econômica não abriria mão do verniz que sempre fez parte da história do Brasil. As classes dirigentes nunca quiseram parecer ao mundo o que de fato são”, diz Haddad na entrevista à colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo.
Na avaliação dele, a crise mundial acarretou a desaceleração do crescimento latino-americano e a crise fiscal, abrindo caminho para a direita na região. “Os EUA estavam perdendo plantas indústrias para a China. E a resposta foi [a eleição de Donald] Trump. Isso abriria espaço para a extrema direita no mundo. Mas a extrema direita dos EUA não tem nada a ver com a brasileira. Trump é tão regressivo quanto o Bolsonaro. Mas não é, do ponto de vista econômico, neoliberal. E o chamado Trump dos trópicos [Bolsonaro] é neoliberal”, considera.
Ciro e Lula
Haddad afirma que apenas Lula, por seu “significado histórico profundo” de quem saiu das “entranhas da pobreza, chegou à Presidência e deixou o maior legado reconhecido neste país”, teria força para conter essa onda da direita.
O petista também responsabiliza Ciro Gomes (PDT) pela derrota da centro-esquerda. De acordo com o ex-prefeito, Ciro “não soube fazer a coalizão que o levaria à vitória”, com o PT. O pedetista, por outro lado, já disse que foi “traído miseravelmente” pelo Partido dos Trabalhadores.
“Ele não quis fazer [a coalizão]. Uma das razões foi declarada pelo [filósofo Roberto] Mangabeira [Unger, aliado de Ciro] nesta casa. Ele dizia: ‘Nós não queremos ser os continuadores do lulismo. Não queremos receber o bastão do Lula. Nós queremos correr em raia própria’. Palavras dele. Eles não queriam ser vistos como a continuidade do que julgavam decadente. Apostavam que, com Lula preso, o PT não teria voto a transferir. Aconteceu exatamente o oposto”, afirma Haddad.
Para o ex-prefeito de São Paulo, Ciro errou no diagnóstico e pode voltar a se equivocar se insistir que isolar o PT é “a solução para o seu projeto pessoal”. “O PT é um player no sentido pleno da palavra. É um jogador de alta patente, que sabe fazer política. Sabe entrar em campo e defender o seu legado”, diz. “O PDT [de Ciro] é um partido de esquerda, ‘pero no mucho’”, ressalva.
Esquerda x neoliberalismo regressivo
O ex-candidato petista afirma que o momento é de unir a esquerda para impedir retrocessos na democracia. “Eu já tentei falar com o Cid [Gomes, irmão de Ciro]. Falei com o PDT, com o PC do B e o PSB. É obrigação nossa conversar. Entendo que devemos trabalhar em duas frentes: uma de defesa de direitos sociais, que pode agregar personalidades que vão defender o SUS, o investimento em educação, a proteção dos mais pobres. A outra, em defesa dos direitos civis, da escola pública laica, das questões ambientais.”
De acordo com Haddad, é preciso reagir à gestação no Brasil do que ele chama de “neoliberalismo regressivo”, decorrente da crise econômica.
“É uma onda diferente da dos anos 1990. Ela chega a ser obscurantista em determinados momentos, contra as artes, a escola laica, os direitos civis. É um complemento necessário para manter a agenda econômica do Bolsonaro, que é a agenda [do presidente Michel] Temer radicalizada. Essa agenda não passa no teste da desigualdade. Tem baixa capacidade de sustentação. Mas, acoplada à agenda cultural regressiva, pode ter uma vida mais longa. Pode ter voto. Teve voto.”
Sistema híbrido
O ex-prefeito paulistano recorre à definição do sociólogo português Boaventura de Souza Santos para dizer que o Brasil vive um “sistema híbrido”, em que os conceitos de ditadura e autoritarismo se confundem. “Ditadura e democracia eram conceitos bem definidos. Os golpes se davam de fora da democracia contra ela. Hoje, o viés antidemocrático pode se manifestar por dentro das instituições. Ele pode se manifestar na Polícia Militar, na Polícia Federal, no Judiciário, no Ministério Público.”
Ainda na entrevista, Haddad rebate as críticas de que falta autocrítica ao PT. “Muitos dirigentes já se manifestaram sobre a questão do financiamento de campanha, de que a regra era aquela, mas nós não fizemos nada para mudar. A reforma política foi o nosso maior problema. Eu falei isso numa discussão interna no governo, em 2003. Houve o diagnóstico de que não tínhamos força, de que seria uma perda de energia sem produzir resultado prático na vida da população. Então se focou em resultado. E ele veio. Foram quatro eleições presidenciais ganhas [pelo PT], quase uma quinta.”
Evangélicos
Haddad considera que o antipetismo cresceu desde 2013, quando houve uma onda de protestos, e que a “pauta regressiva”, defendida por Bolsonaro, reforçou esse sentimento entre os evangélicos, segmento no qual o presidente eleito teve ampla vantagem sobre o petista no segundo turno.
“Há um fenômeno evangélico sobre o qual temos que nos debruçar. Não podemos dar de barato que essas pessoas estão perdidas. A Ética Protestante e o Espírito Capitalista é um clássico do Max Weber. A gente deveria pensar na Ética Neopentecostal e o Espírito do Neoliberalismo. O Brasil, estruturalmente, é um híbrido entre casta com meritocracia. Se admite que o indivíduo ascenda. Mas sozinho. Desde que a distância entre as classes permaneça. O neopentecostalismo e a teologia da prosperidade são compatíveis com isso. Assim como no final da ditadura foi possível abrir um canal de diálogo com a Igreja Católica, a esquerda tem agora o desafio de abrir um canal com a igreja evangélica, respeitando suas crenças.”
O ex-candidato petista diz que não pretende dirigir o partido nem sua fundação, mas que militará pela formação de frentes em defesa dos direitos sociais e civis. “Porque na política ninguém perde a guerra. Não existe a guerra, com começo, meio e fim. É só batalha. Uma atrás da outra.”
BNC Política