SÃO PAULO – A mais recente notícia sobre os esdrúxulos erros nos slides apresentados aos estudantes das escolas estaduais de São Paulo informa que, depois de a Justiça do estado determinar a suspensão da distribuição do material didático digital elaborado pela Secretaria Estadual de Educação, o número 2 da pasta caiu. A exoneração de Renato Dias do cargo de coordenador pedagógico foi publicada nesta quarta-feira (6) no Diário Oficial.
Dias não era só o responsável pela Coordenação Pedagógica da Secretaria de Estado de Educação de São Paulo. É também ex-diretor da Somos Educação, o maior grupo de ensino privado que atua na educação básica no país e que pertence à Cogna, dona também da Kroton. Trata-se, portanto, para usar a gíria, do puro suco — nesse caso, bem amargo — do que representa a mercantilização, a financeirização, a oligopolização e a privatização da educação brasileira, denunciada há mais de 15 anos pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee, com a campanha “Educação não é mercadoria”.
O caso de São Paulo provocou perplexidade pela amplitude do grotesco. Slides impostos aos estudantes nas aulas de História cometiam verdadeiras aberrações, como afirmar que Jânio Quadros era prefeito de São Paulo em 1961 (quando, na verdade, era presidente da República), que a capital paulista tem litoral e que foi o imperador Dom Pedro II que assinou a Lei Áurea, e não sua filha, Princesa Isabel. Em material para aula de Ciência, constava que a água pode transmitir Parkinson, Alzheimer e depressão. E na disciplina de matemática, foi encontrada falha numa conta básica da tabuada do 9.
Há várias questões mais profundas, porém, por trás de erros tão grosseiros. A primeira delas é o quanto essas “incorreções” — um óbvio eufemismo — evidenciam a total despreocupação dos privatistas com a qualidade do ensino. A segunda é o quanto monstros educacionais como a Cogna, que já promoveram — e seguem promovendo — um estrago gigantesco e catastrófico no ensino superior, avançam cada vez mais sobre a educação básica. A terceira é que esse avanço está longe de se restringir a São Paulo.
A proposta do estado ganhou realce na mídia quando, no início do mês passado, o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) soltou a notícia-bomba de que não iria aderir ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e que, em vez dos livros cuidadosa e criteriosamente selecionados pelo Ministério da Educação (MEC), usaria material próprio, 100% digital. Acontece que o fornecimento de materiais didáticos para diversos municípios pelo país é justamente um dos tentáculos privatizantes que empresas como a Somos estendem sobre as escolas de educação básica.
E não apenas isso. Em maio de 2020, por exemplo, durante as medidas de isolamento e suspensão do ensino presencial necessárias ao enfrentamento da pandemia de covid-19, a Somos, que tem escolas privadas próprias e se apresenta como ofertante de “um amplo portfólio de soluções educacionais, como sistemas de ensino, editoras, soluções de ensino complementar, além de uma tecnológica plataforma de aprendizado digital e de e-commerce, o que permite nos apresentarmos e nos oferecermos como o parceiro integral da escola”, liberou “acesso ilimitado ao portfólio de cursos 2020 da plataforma PROFS – Programa de Formação de Professores para professores da rede pública”.
E aí entra uma quarta questão, a ideológica, que busca afetar, inclusive, como explicita o exemplo acima, a formação de professores. Erros bizarros como os apontados pela imprensa no material didático disponibilizado pela Secretaria de Estado de Educação de São Paulo são, felizmente, facilmente detectáveis. E corrigíveis, como determinou a Justiça. Mas e as imprecisões, inexatidões, equívocos, desvios, enganos mais sutis que provavelmente existem? Qual o objetivo político de uma educação precária em qualidade e tendenciosa em (des)informação?
Materiais como esses não passam pelo crivo judicioso do PNLD. Sabem outro exemplo que também não passa: os livros didáticos usados nas escolas militares, que continuam tratando o golpe de 1964 como “revolução”. Erros, mesmo os mais ridículos, dificilmente são inocentes.