GRANDE ILHA – Um artigo intitulado “Música, Músicos, Medicina e o Rim”, escrito a quatro mãos por Rajeev Raghavan e Garabed
Eles citam uma humorista americana, Erma Bombeck, que foi diagnosticada com rins policísticos, aos 20 anos e, tendo realizado hemodiálise por um bom tempo, faleceu por complicações de um transplante. É dela a frase: “Se você pode rir disso, você pode viver com isto”. Erma só podia rir ou fazer outros rirem, porque a arte é libertadora em muitos aspectos. No livro Poética II, 335 a.C., que foi perdido ou queimado, Aristóteles constrói a gênesis da cura pelo sorriso. Em O Nome da Rosa, livro e filme homônimo, Umberto Eco repercute essa teoria de forma emblemática.
Entre as formas de manifestação de arte, destaco a música. Ela é envolvente, vibrante e estimulante e faz seu papel, quando nos ajuda a suportar a dor, mesmo que por breve momento, quando permite que a pessoa reviva o que viveu e esqueça o que dói. Porque vivemos apenas o instante. Luís Flávio Gomes, jurista que nos deixou este ano, vitimado por um câncer, passou seus últimos dias se dedicando à tarefa de colecionar as músicas que marcaram sua existência.
O certo é que a relação entre a música e o tratamento de doenças é tão antiga quanto a civilização. Desde tempos imemoriais os xamãs usavam a música como forma mística de cura por meio da alteração da consciência daqueles que eram objeto de seus cuidados.
No livro bblico do profeta Samuel, o rei Saul, o primeiro rei de Israel, sofria de um tormento mental e espiritual. Quando o mal o atacava, Davi dedilhava sua harpa e, então, se sentia melhor e mais aliviado.
Os gregos, em sua riquíssima mitologia, fundem em Apolo, o deus da música e da cura. Esculápio, deus da medicina, é seu filho. E, igualmente, Orfeu, é deus da música e da poesia. Ambas, música e poesia, podem ter efeitos terapêuticos. Uma embala a alma com seu ritmo e harmonia; a outra, o autoconhecimento e a esperança. Ambas são fruto da criatividade humana e carregam em si mesmas o sentido do estético e traduzem emoções que nem sempre são possíveis de serem verbalizadas.
Hipócrates, pai da medicina e Platão, fundador da Academia de Atenas, aconselhavam a música como forma de tratamento para pessoas perturbadas. Assim, a música tem um longo histórico associado aos tratamentos do corpo e da alma. Não à toa, a maior forma de adoração de todo tipo de divindade tem na música seu elemento fundamental.
Chico Buarque prescreve música “contra fel, moléstia, crime. (…) Para um coração mesquinho, contra a solidão agreste, Luiz Gonzaga é tiro certo, Pixinguinha é inconteste, tome Noel, Cartola, Orestes, Caetano e João Gilberto”. E a sabedoria popular também reconhece a música como remédio: “quem canta seus males espanta”.
Minha especialidade médica, a nefrologia, tem estreita relação com a música, não só porque Mozart, Beethoven, Cole Porter, Billy Joel, Natalie Cole e Barry White, e outros, sofreram de doenças renais, mas também porque os avanços da medicina, felizmente, permitiram que eles vivessem tempo suficiente para nos presentear com sua arte que lhes foi lenitivo para enfrentar tratamentos renais substitutivos e as adversidades desta condição de saúde.
Muitos dos meus colegas nefrologistas usam a música tanto como forma de criar um clima agradável em suas intervenções, quanto para se concentrarem em seu trabalho. Os efeitos da música estão largamente documentados, mas, no caso da nefrologia e, especialmente, em clínicas de hemodiálise, é uma área que ainda está sendo pesquisada.
O artigo que citei no início do texto é uma comprovação científica dos efeitos beneméritos que os acordes produzem nessa área específica da medicina. Para além das terapias substitutivas, da indústria farmacêutica e das mãos hábeis dos profissionais que cuidam dos pacientes renais, o doce som da melodia acalma o corpo e anima a alma e o coração.
Natalino Salgado Filho
Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.
BNC Geral