SÃO PAULO – A cada temporada de chuvas repetem-se, em diversos pontos do Brasil, as tragédias resultantes de deslizamentos e alagamentos, que deixam um rastro de dezenas de vítimas, traumas e destruição. Ao velho problema da forma como se deu o desenvolvimento das cidades, somado ao descaso de governos, se sobrepõem os efeitos das mudanças climáticas, que levam a um aumento das ocorrências extremas. A tragédia do Litoral Norte de São Paulo é mais uma a mostrar que o Brasil ainda tem muito o que fazer para estancar esse tipo de catástrofe.
Neste cenário, ainda que considerando a atipicidade da tempestade, o desafio colocado é resolver as dívidas que o país tem com sua população mais pobre, que se viu, ao longo de décadas, obrigada a ocupar áreas de risco, ao mesmo tempo em que precisará contribuir para frear a crise climática e mitigar seus efeitos.
Ações emergenciais
No caso do Litoral Norte paulista, em meio ao vai e vem de versões sobre as circunstâncias da tragédia que se abateu principalmente sobre a cidade de São Sebastião, o governador bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) acabou tendo de admitir, nesta quinta-feira (23), que o sistema de alerta de desastres por meio do envio de mensagens de texto (SMS) não funcionou para alertar os moradores sobre a forte tempestade que estava para se abater sobre a região. E afirmou que o governo vai instalar sirenes em áreas de risco em São Paulo — um vácuo inexplicável para o estado mais rico do país.
Ao mesmo tempo, é preciso lembrar a falta de medidas no âmbito municipal e, sobretudo, o abandono das cidades por parte de Jair Bolsonaro (PL). Nesta terça-feira (21), o ministro da Integração e do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes revelou que o governo anterior deixou apenas R$ 25 mil para o atendimento de desastres como esse.
Tão logo ocorreu a tragédia, diferentemente de seu antecessor, Lula visitou as áreas afetadas. E o governo anunciou, entre outras medidas emergenciais, a destinação de R$ 120 milhões para o socorro às vítimas e a reconstrução das cidades, o pagamento de auxílio de R$ 400 para os desabrigados, a entrega de alimentos e kits com medicamentos e insumos, a liberação de saques no FGTS e a prioridade no Minha Casa, Minha Vida para as famílias que perderam suas moradias.
No entanto, será preciso um esforço conjunto para mudar o panorama das cidades e evitar que esse tipo de desastre continue ocorrendo ano após ano. Segundo mapeamento feito pelo governo federal, há no país cerca de 14 mil pontos com risco muito alto de deslizamento, nos quais vivem aproximadamente 4 milhões de pessoas.
Aquecimento global e infraestrutura urbana
Conforme explicou ao site Congresso em Foco o cientista brasileiro referência mundial em mudanças climáticas, Carlos Nobre, “o aquecimento global não está provocando apenas o aumento na frequência desses eventos, mas também o impacto provocado por eles, com os recordes sendo sempre batidos. Nós tivemos agora as maiores chuvas já observadas no sudeste do Brasil em um período de 24 horas. Ano passado, já tivemos 500 mm em Petrópolis no mês de março, que em apenas três horas chegou a 270 mm. Esses recordes vêm sendo batidos em todo o mundo, mas também no Brasil. E isso tem tudo a ver com as mudanças climáticas”.
Em São Sebastião, choveu mais de 600 mm e, até o momento, foram registradas 54 mortes (53 na cidade e uma em Ubatuba); além disso, há 30 desaparecidos e quatro mil desalojados ou desabrigados.
O problema dos deslizamentos e enchentes piorou com o aquecimento global, mas já existiam antes pela falta de um planejamento urbano adequado nas cidades. Ao portal Vermelho, Francisco de Assis Comarú, professor da Universidade Federal do ABC que tem como área de atuação planejamento e gestão urbana e ambiental, destacou que os efeitos das mudanças climáticas são mais uma camada sobreposta aos velhos problemas urbanos brasileiros. “As cidades refletem as características da sociedade. E a nossa sociedade é marcada por profunda desigualdade, por verdadeiros abismos sociais”, declarou.
Para ele, é fundamental “fazer com que toda a população caiba na cidade, em suas áreas urbanizadas”. E quando isso não é possível, é preciso garantir que “sejam levados à periferia infraestrutura e serviços públicos urbanos como sistema de água, esgoto, drenagem de águas pluviais, energia elétrica, sinal de Wi-Fi, muro de arrimo, praças, parques, áreas verdes, equipamentos públicos de saúde, educação, cultura, esporte e lazer. Todas essas tipologias de investimentos precisam ser feitas”.
Além disso, explica, do ponto de vista do planejamento, “é muito importante que as prefeituras também desestimulem a especulação imobiliária, que aumenta o preço da terra no geral”. Ele salienta que o poder público municipal “não deve entrar no jogo do interesse do mercado imobiliário, deve sim fazer o jogo do interesse público, e o interesse público é ter aluguel acessível, preço da terra controlado, fazer com que o IPTU seja usado como um imposto de política fundiária e urbana, de caráter progressivo tanto no espaço como no tempo, e combater a especulação imobiliária por meio de fiscalização”.
Ele destaca que as políticas emergenciais e as ações de curto prazo de gestão de risco “tem de ser complementadas por uma política habitacional séria de urbanização das favelas e das periferias, de regularização fundiária, de produção de unidades novas nas áreas intermediárias das cidadese reabilitação dos centros e de áreas bem servidas de infraestrutura, com produção de moradia dentro da área urbanizada. A população trabalhadora tem direito de morar em bairros bons, onde há infraestrutura, sem ser discriminada, ela tem esse direito e a gente deve dizer isso e esse direito deve ser efetivado”.
Nesse sentido, destaca ainda a importância de se incentivar, junto à população, a permeabilização do solo. “As pessoas têm de ser incentivadas a ter jardins e quintais de terra e não cimentados. É preciso haver áreas verdes, canteiros, praças para que a água possa penetrar no solo”.
Ele defende que seja cumprida a função social da propriedade, da cidade, e da terra e que tais processos envolvam a população, entidades e movimentos sociais. Por fim, argumenta: “Não tem milagre, a gente não resolve o problema sem investimento. Temos que cuidar melhor, muito melhor das nossas cidades”.