BRASÍLIA – Apresentamos cinco razões para a rejeição absoluta da PC 006/2019: 1) Desnecessidade da reforma da Previdência Social, desmentindo a “unanimidade” apregoada pelos reformistas; 2) Pretendem retirar as garantias constitucionais conquistadas em 1988, transferindo as regras para Leis Complementares (LC) e então negociando regras de transição com validade restrita; 3) As regras de transição aglomeram um “saco de maldades”, e as negociações não passam de estelionato, valendo apenas até futura LC; 4) O regime de capitalização pretendido como a “Previdência do futuro” não substitui o Seguro Social, e as experiências impostas pelo arbítrio, como no Chile, comprovam; 5) Ao contrário do que afirma a propaganda oficial, as transformações acabam com as garantias dos atuais aposentados e pensionistas.
1) A Reforma proposta é absolutamente desnecessária
A Seguridade Social brasileira, conquista inscrita na Constituição Cidadã em 1988, é composta de Previdência Social, Saúde e Assistência Social. Como a nossa Previdência tem sua origem no seguro social alemão, da década de 1880, e assim, é compulsória, obrigatória para os trabalhadores, e contributiva, a nossa Seguridade é um sistema híbrido, com Saúde e Assistência Social enquanto responsabilidade estatal, sem a contribuição direta. Fica muito fácil apresentar o “rombo”, tão utilizado na propaganda do governo, se a União em nada contribui, pelo contrário, retira.
A LOPS, em 1960, previa um seguro tripartite, tanto nas contribuições quanto na administração. Apontava inclusive as obrigações em 8% do salário, para o patrão, para o empregado e para a União.
Seguro Social em qualquer país civilizado é um regime de repartição, um pacto de gerações; quem está em atividade contribui para garantir o pagamento dos benefícios dos que já estão inativos. Durante muito tempo a Previdência Social recolheu muito e pagou pouco. Ao invés de formar um fundo de reserva suficiente para garantir o Seguro Social, esta verba foi utilizada em obras como Brasília, a ponte Rio-Niterói e a estrada Transamazônica.
Os Regimes Próprios de Previdência Social dos servidores públicos, de caráter contributivo, só surgiram com a Emenda Constitucional (EC) 20, em 1998. Até ali, a aposentadoria, no valor do último salário, era obrigação do Tesouro, nacional, estadual ou municipal, sem obrigações contributivas.
Quando a tecnocracia junta na mesma conta o Regime Geral, os Regimes Próprios, a Assistência Social e a Saúde, e sem participação financeira da União, o resultado só pode ser um rombo fabuloso, utilizado para convencer a opinião pública de que a reforma seria necessária.
Além disso, as reformas constitucionais previdenciárias, que reduziram substancialmente os direitos dos trabalhadores, já aconteceram em 1998 e em 2003, quando a “bola da vez” foram os servidores públicos. Sem contar as maiores exigências e menores garantias através de alterações na legislação ordinária de 1994 até 2015.
Se fosse para haver qualquer reforma, que ocorresse em relação ao custeio, acabando com isenções e desonerações, e cobrando efetivamente as dívidas.
2) Retiram as garantias constitucionais da Previdência Social
O artigo 40 da Carta Magna, originalmente garantia as aposentadorias dos servidores públicos. A partir de 1998, com a EC 20, o mesmo artigo passou a dispor sobre regime de previdência social de caráter contributivo e com critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e, em seu § 1º, define as regras para os benefícios. O artigo 202 do mesmo Diploma, também com muitas alterações, especialmente pela EC 20/1998, em seu § 7º determina as regras para aposentadorias por tempo de contribuição e por idade. Pois a PEC 006/2019 envia estas regras para futura Lei Complementar “de iniciativa do Poder Executivo federal”. Até mesmo a proposta de um novo regime de previdência “em sistema de capitalização” seria através de uma LC.
Nem é preciso lembrar que um emenda constitucional depende de três quintos da votação nas casas legislativas, enquanto lei complementar exige maioria absoluta, além de ter trâmite mais rápido. Observe-se a reforma trabalhista, que tantos males causará aos trabalhadores brasileiros, aprovada com alguma tranquilidade por não envolver matéria constitucional.
As regras que o governo se diz disposto a negociar, estão nas disposições transitórias, com validade até que uma Lei Complementar discipline a matéria. Significa que as regras de transição que exigem três quintos de votos poderão ser modificadas por metade dos votos mais um, na próxima legislatura. É impossível ter confiança em tais negociações.
3) As regras de transição representam um “saco de maldades”
Para os servidores públicos, a perversidade principal está na revogação das regras de transição das ECs 41/2003 e 47/2005. Além de normas específicas para policiais, agentes penitenciários, e, inclusive no Regime Geral, para trabalhadores em condições especiais ou com deficiência, o que merece muita atenção de todos é a extinção da aposentadoria por tempo de contribuição e a perversidade do cálculo pretendido.
Em regra de transição, válida até a LC, consta idade mínima para aposentadoria em 62 para a mulher e 65 para o homem. Representa a exigência para a atual aposentadoria por idade, e ainda punindo mais a mulher, com o acréscimo de 2 anos. O tempo mínimo de contribuição para a aposentadoria voluntária passaria a ser 20 anos.
Para quem já está no sistema, seja no INSS seja servidor público – que teve a idade mínima aprovada na EC 20/1998 -, a somatória tempo de contribuição e idade passa a ser uma exigência. Enquanto atualmente serve para a isenção da aplicação do Fator Previdenciário (FP) no Regime Geral e para a utilização da regra de transição da EC 47/2005 para os servidores públicos, a soma passaria a ser exigência.
Estaria extinta a aposentadoria por tempo de contribuição, antiga por tempo de serviço, e, em 12 anos, as regras de transição teriam igualado para todos a exigência de idade, 62 anos para as mulheres e 65 para os homens.
O governo até parece disposto a negociar, certamente estes 2 anos a mais punindo as mulheres poderiam representar o “bode na sala”, mas sempre vale lembrar que, se aprovada a PEC 006, dali para a frente seria Lei Complementar dispondo tais regras.
A perversidade mais se concentra nos cálculos. A base passaria a ser a média de todas as contribuições desde julho de 1994, ou do início se posterior, representando cada tostão suado durante a vida laboral. E, em todos os benefícios, quem tiver até 20 anos de contribuição receberá 60% da média, acrescentando 2% para cada ano a mais de contribuição.
No benefício voluntário, 20 anos seria o mínimo de contribuição necessário, e, em casos de invalidez, se o tempo for inferior, também terá direito a 60%. Para alcançar 100% da média da vida toda, será necessário contribuir por 40 anos.
Um pequeno comentário: nos benefícios decorrentes de sinistros laborais, acidentes ou moléstias, o cálculo seria 100% da média, independente do tempo de contribuição. Para compensar, em um dos “jabutis” desta PEC, terminariam com as varas da Justiça Estadual especializadas em acidentes do trabalho.
E sempre valendo lembrar que uma Lei Complementar ainda poderia tornar pior.
Para a pensão por morte, o cálculo seria o sempre pretendido pelo neoliberalismo, 50% da aposentadoria do(a) falecido(a), acrescido de 10% para cada dependente. Quando o segurado falece antes de se aposentar, ainda em atividade, a base de cálculo seria uma hipotética aposentadoria por invalidez. Pela PEC apresentada, se o trabalhador morre em um acidente comum com 15 anos de contribuição, deixando esposa e um filho menor, a pensão será calculada em 70% de 60% da média contributiva.
E insistem ainda os reformistas com a inacumulabilidade de benefícios, seja aposentadorias por regimes diferentes ou mesmo aposentadoria e pensão por morte. Inventaram uma regra que permitiria o recebimento do benefício de maior valor, restando um percentual do outro beneficio, de acordo com o seu valor, quanto maior este, menor será o percentual aplicado. Sempre é bom destacar que se trata de benefícios de caráter contributivo; que não se possa acumular substitutivo da remuneração no mesmo sistema, ou mais de uma pensão por morte de cônjuge, vá lá…
Falando em “saco de maldades”, nem o benefício previsto na Lei Orgânica de Assistência Social escapou. Pretende o reformista que, em condições de miséria, apenas aos 70 anos de idade teria direito a um salário mínimo. E, nas regras de transição, inventa um meio-prato-de-sopa, no valor de 400 reais, a partir dos 60 anos.
4) O regime de capitalização
Ficariam a cargo também de uma Lei Complementar as definições do regime de capitalização que seria implantado para substituir o Seguro Social. Mas a PEC 006/2019 aponta que será “um sistema de capitalização, na modalidade de contribuição definida”.
Em qualquer país civilizado, o Seguro Social é um regime de repartição, um pacto de gerações. E, bem administrado, funciona muito bem, auxiliando bastante a economia nacional, com garantias sociais e distribuição de renda. Em uma sociedade em que se busca justiça e paz, o Seguro Social é a coluna principal, tendo de um lado a Assistência Social para os que não conseguem se incluir na Previdência, e de outro os Fundos de Previdência Privada, complementando a renda dos que ganham acima do limite (atuais 5,8 mil reais) para que realmente se aposentem, possam parar de trabalhar.
Os regimes de capitalização utilizados pelos fundos de pensão criados em empresas estatais (boa parte privatizadas) eram de benefício definido; prometiam complementos da aposentadoria paga pelo INPS. É verdade que o matemático atuário (especialista em estatística e afins) tinha que ser muito bom para saber quanto cobrar de contribuição e como aplicar para garantir o pagamento dos benefícios prometidos. No final do século passado foram feitas as migrações para planos de contribuição definida. São formados fundos individuais com as contribuições e devidas aplicações, e, no momento de se aposentar, tal fundo será dividido por sua “expectativa de sobrevida”, pelo tempo em que o IBGE estima que o trabalhador ainda vá viver. É bem mais fácil fazer uma projeção para o futuro do que uma promessa que deve ser cumprida. E para as empresas patrocinadoras, solidariamente responsáveis, a migração significou um grande alívio.
Em fundos fechados ou em instituições financeiras, os planos de contribuição definida só pode ter como objetivo o complemento da renda dos aposentados, e nunca a substituição do Seguro Social.
Um claro exemplo do quanto os regimes de capitalização não substituem os seguros sociais de responsabilidade estatal é o Chile, onde foram instalados os regimes de capitalização durante a sangrenta ditadura de Pinochet. Os resultados são conhecidos em todo o mundo, com os trabalhadores sem garantias, fazendo de seu país o campeão sul-americano de suicídios de idosos.
Não pode passar sem registro que o Chile é apenas um dentre os 30 países que aderiram a regimes de capitalização e assemelhados (todos situados na América Latina, Leste Europeu e África, muito sugestivamente), dos quais 18 já se arrependeram e retornaram aos regimes públicos de repartição. Vale consultar boletim da OIT deste último mês de dezembro, com o título “Reversão da Privatização de Previdência: Questões chave”.
A implantação desta pretendida “nova previdência” seria o maior retrocesso social que nosso país poderia viver.
5) Aposentados e pensionistas sem garantias
Na Constituição Cidadã de 1988 tivemos uma grande conquista, garantindo que os benefícios previdenciários devem ser corrigidos todo ano, para manter seu “valor real”. É verdade que as atualizações não têm mantido exatamente o valor real das aposentadorias e pensões, mas é uma garantia constitucional, sempre valendo nos embates judiciais e políticos.
Ocorre que, além de retirar a garantia constitucional, se acontecer a implantação do regime de capitalização, com cada trabalhador contribuindo apenas para seu próprio fundo (se o patrão contribui ou não dependeria da lei complementar), como fica o pacto de gerações? Sem as contribuições, surgiria, aí sim, um grande rombo na Previdência Social, sem qualquer chance de solução.
Num primeiro momento, aponta-se cinco boas razões para rejeitar a PEC 006/2019, porém ainda cabem novas análises. Existem maldades e “jabutis” que precisam ser desvendados e denunciados, mas o principal, neste momento, é exigir a manutenção das regras da Previdência Social na Constituição. Negociar em regras de transição com validade finita e sem peso será apostar na extinção bem rápida do sistema previdenciário em nosso país, com quase cem anos de luta e sangue dos trabalhadores.
*Sergio Pardal Freudenthal é advogado e mestre em Direito Previdenciário.
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