GRANDE ILHA – Um velho casebre cercado por mato, lixo, sem portas ou piso. O teto danificado, coberto com poucas telhas e sustentado por um pedaço de madeira, estava prestes a desabar. Algumas roupas velhas no chão. Nenhum móvel. Apenas um colchão sujo, rasgado e sem lençol. Deitado sobre ele, um idoso desorientado e em total estado de desnutrição. Nome: Raimundo Vieira dos Santos, 73 anos.
Raimundo morava sozinho, há mais de 20 anos, no casebre em que foi resgatado, em outubro de 2017, no bairro Fé em Deus, em São Luís. Uma vizinha, revoltada com a situação de abandono em que ele se encontrava, denunciou à Promotoria de Defesa do Idoso.
As condições de Raimundo chocaram os profissionais do ‘Projeto Resgate’, coordenado pelo promotor de Justiça Augusto Cutrim. Excessivamente magro e debilitado, a primeira providência foi levar o idoso a uma unidade hospitalar para ser submetido a exames médicos. O próximo destino foi o Asilo de Mendicidade de São Luís, onde Raimundo se encontra até hoje, sob cuidados.
Raimundo Vieira dos Santos é mais um dado estatístico de idosos abandonados no Brasil. Assim como em todo o país, no Maranhão, o quadro também é muito preocupante. De janeiro a outubro deste ano, o Ministério Público resgatou oito idosos em situação de vulnerabilidade. Todos foram encaminhados a unidades de saúde e abrigos.
Um ano depois, já inteiramente ambientado ao Asilo de Mendicidade, Raimundo Vieira dos Santos se tornou outra pessoa. Bem alimentado, medicado, falante e disposto, em nada se parece com o homem magro, doente e mentalmente confuso, que ali chegou, em 2017.
“Eu gosto muito de viver no Asilo. Às vezes, tenho vontade de sair para dar um passeio na rua, reslver algumas pendências pessoais, mas chego até o portão e volto. Melhor ficar. Aqui temos tudo, somos bem cuidados”, relata ele, que diz ter três irmãos. Conta que a esposa morreu, há muitos anos, e que só teve um filho que faleceu aos sete meses de vida.
“Minha irmã veio me visitar e trouxe duas bermudas de presente”, diz com um leve sorriso. O olhar se perde por um momento, como quem tenta buscar na memória alguma lembrança feliz.
UM ABRIGO, UM LAR E UM SONHO
A realidade de Raimundo não é muito diferente dos 28 idosos que atualmente residem no Asilo de Mendicidade de São Luís. Assim como ele, alguns foram resgatados e levados pelo Ministério Público, após denúncias de abandono ou maus-tratos. Outros foram levados pela própria família. E ainda há os que cruzaram os portões do abrigo por conta própria.
Quem se dispõe a conhecer o cotidiano da mais antiga instituição voltada ao atendimento de idosos da capital deve estar preparado, emocionalmente, para também conhecer um mundo diferente, melancólico, marcado por muitas histórias de vida impactantes.
No Asilo de Mendicidade, que em abril completará 100 anos, o passado se confunde com as necessidades do presente e os anseios do futuro. O tempo corre de uma forma diferente.
Durante as atividades diárias, em que os internos exercitam o cérebro por meio de jogos, acompanhados por equipe multiprofissional, dona Elcy Rodrigues, de 73 anos, recita poemas, canta e dança. É uma das internas mais faceiras e alegres do abrigo, cujo assunto preferido nas conversas com os visitantes é falar dos seus namoros..
Elcy em nada se parece com a senhora que foi deixada no Asilo, há 1 ano e seis meses, por uma vizinha. Quando chegou, usava fraldas, era desnutrida, tinha escaras e não conseguia andar, segundo as enfermeiras.
Em pouco mais de um ano sob os cuidados da equipe do Asilo, dona Elcy passou por uma verdadeira transformação. Muito vaidosa e sempre perfumada, dona Elcy gosta mesmo é de namorar e já arranjou até um noivo, que também é interno no Asilo. Mas diz que já está decepcionada: “ele é mulherengo, vive me traindo e não quer saber de casar. Só quer safadeza. Já acabei com o noivado”, diz ela sorrindo, sem esconder os ciúmes.
Nos leitos, estão os internos e internas mais debilitados, acometidos por Alzheimer e por outras doenças da idade, mas sempre cercados de permanente cuidado das enfermeiras. Muitos deles não recebem visitas de qualquer parente há meses e até anos.
A enfermeira Ana Carla Gonçalves de Sousa dedica-se aos idosos do Asilo, há quase 10 anos, e já os têm como membros de sua família. “O abandono emocional é o maior sofrimento deles. Aqui no Asilo nós cuidamos, mas o amor e a atenção dos filhos, de um irmão, de um parente, é insubstituível para eles”, afirma Ana Carla.
Os nomes escritos em folhas de papel coladas na parede e sobre as camas dos dormitórios, revelam um pouco quem é cada um dos internos que ali estão. Como por exemplo, uma importante mulher da alta sociedade maranhense, que por muitos anos pontuou nas colunas sociais. Hoje esquecida, a idosa é uma das internas que merecem maior cuidado médico e acompanhamento permanente de cuidadoras. Apenas um sobrinho a visita esporadicamente.
“O Asilo guarda histórias de vida muito comoventes. Cada idoso que entra aqui carrega seus dramas pessoais e nós precisamos compreendê-los”, explica Ana Carla. Além dos 28 abrigados, há, ainda, uma lista de 70 aguardando vaga.
A história de vida de Ribamar Carvalho, 76 anos, é uma das mais tristes. O idoso diz que o seu maior sonho é poder retornar para a sua casa, que diz estar localizada no bairro Caratatiua. E afirma que chora todos os dias de saudade da esposa e da casa. Ele não se lembra como foi parar no abrigo. “Quando eu acordei, já estava aqui. Acho que me trouxeram quando estava dormindo”, relata.
Ana Carla confirma que Ribamar chegou dopado de medicamentos e passou muito tempo para compreender onde estava. “Foi uma ruptura difícil e dolorosa para ele”.
Quem chega ao Asilo logo se depara com uma senhora muito arrumada, enfeitada com colar no pescoço e rosa na cabeça. É Dona Odacyr Barbosa Fernandes, de 80 anos, carinhosamente chamada de ‘dona Dodó’. Todos os dias ela se arruma, pega a bolsa no armário e se senta no terraço do asilo, aguardando a chegada de um parente para levá-la embora. O parente não vem e, no dia seguinte, lá está ela novamente esperando. A mesma rotina, há um ano.
HISTÓRIA DE AMIZADE
Percorrendo cada canto do Asilo de Mendicidade, ouvindo relatos de internos, dos funcionários e voluntários, é possível compor o roteiro de um lindo e comovente filme de fatos reais. Um desses relatos já contabiliza mais de 20 anos e está contado no livro “Me Conte a sua História”, lançado há cinco anos.
A obra narra histórias reais de idosos em abrigos de várias capitais brasileiras. O capítulo “Quando o Futuro Se Torna um Presente do Passado” é dedicado a Avany de Carvalho Jorge e Constância Ewerton, duas internas do Asilo de Mendicidade de São Luís, que vivenciaram uma inspiradora história de lealdade e amizade até os últimos dias de suas vidas.
Avany era a patroa rica, casada e sem filhos. Constância, a empregada que muito jovem começou a trabalhar para o casal. Morou com eles, em Codó, durante 40 anos. Um dia, resolveu deixá-los e veio morar em São Luís, apesar das lágrimas e apelos de Avany. Passaram-se muitos anos, quando Avany, morando no Rio de Janeiro e já viúva, resolveu dar um passeio em São Luís.
O acaso uniu novamente patroa e empregada. Durante a estadia em São Luís, Avany, com 82 anos, resolveu fazer uma visita ao Asilo e reencontrou Constância, já com 90 anos e interna. Depois de muitas conversas e risadas, veio o convite de Constância para que Avany fosse morar com ela no abrigo. A patroa vendeu tudo no Rio e retornou a São Luís disposta a se internar no Asilo.
Alguns anos se passaram e a relação entre as duas já não era mais de patroa e empregada e, sim, de uma amizade que apenas se fortaleceu até a morte.
Francisca Moraes, psicóloga, voluntária do Asilo, conta que as camas das duas eram uma ao lado da outra e que passavam o dia inteiro juntas, conversando. Constância, com 98 anos, debilitou-se e Avany cuidou dela. Após a morte de Constância, a amiga entrou em profunda tristeza, seguida de depressão e, poucos anos depois, também faleceu.
UM ARTISTA ENTRE TELAS
Entre apertos de mão, abraços, sorrisos e muitas conversas, os visitantes também podem descobrir que o Asilo de Mendicidade mantém, por mais de 20 anos, protegido entre os seus muros, um grande intelectual, arquiteto e artista plástico maranhense.
Sentado em um dos bancos no jardim, sob as mangueiras seculares do asilo, o artista plástico, pintor, matemático, desenhista e arquiteto Ithamar Monteiro Nunes fuma tranquilamente seu cigarro. Lúcido e inteligente, no auge dos seus 86 anos, ele é um dos internos que cruzou os portões por vontade própria. Isso aconteceu há mais de 20 anos. Ele diz que se sente feliz e sem nenhuma vontade de deixar o abrigo. “Sair pra que?. Aqui não me falta nada”, afirma ele, sorrindo.
Sem filhos, sem esposa porque nunca se casou, e sem irmãos, já que todos os cinco já faleceram, o arquiteto sofreu um grave acidente que lhe causou a amputação da perna esquerda. Foi então que se deu conta que era impossível manter-se vivo sem alguém que cuidasse dele. Arrumou as malas e foi morar no Asilo. Na bagagem, algumas poucas roupas e suas relíquias: telas pintadas a óleo e os álbuns com seus desenhos feitos a mão livre.
Verdadeiras obras primas que Ithamar guarda com muito carinho e mantém sempre juntas a ele, guardadas em uma maleta para mostrar aos visitantes. Algumas telas estão expostas na parede do pavilhão masculino.
A Maçonaria montou um ateliê no Asilo para o professor Ithamar receber os seus alunos para as aulas de pintura. Eles podem chegar a qualquer hora, de domingo a domingo.Entre os pertences de Ithamar, estão os recortes de notícias sobre as exposições de suas telas, promovidas pela Maçonaria e divulgadas em jornais de São Luís.
RAIO-X DO ABANDONO
Mas, se dentro dos abrigos o abandono afetivo por parte dos familiares maltrata os idosos, fora deles a situação é ainda mais grave. Nas ruas e praças das cidades, nas grandes avenidas ou até mesmo em um quartinho isolado no quintal de alguma casa, há sempre um idoso exposto ao perigo, abandonado ou sofrendo maus tratos.
Os dados estatísticos comprovam que o Brasil se planeja para ser um país eternamente jovem, porém, tem dificuldade para lidar com seus cabelos brancos. Manter-se vivo por muitos e muitos anos se tornou um desafio econômico para os brasileiros.
Segundo o IBGE, em 2012 existiam no país 25,4 milhões de idosos. Em cinco anos, esse número aumentou 18%, o que corresponde a 30,2 milhões de sexagenários em 2017. Em 2030, o percentual corresponderá a 18,62% da população brasileira; já em 2060 serão 33,71%.
O IBGE apontou que no Maranhão, no primeiro trimestre de 2017, existiam 808 mil idosos, o que corresponde a 11,6% da população. Em 2030, a estimativa é que este percentual aumente para 12,4%, o que corresponde a mais de 914 mil idosos.
Na medida em que aumenta o contingente populacional de idosos, aumenta também a violência contra eles. Segundo dados do Ministério Público Estadual, no ano de 2017 foram registrados 81 casos de ameaça a idosos. Já este ano, o mesmo número foi alcançado logo nos três primeiros meses.
No ano passado, foram expedidas 125 medidas de proteção de urgência. Só nos três primeiros meses deste ano, já foram expedidas 189 medidas com o mesmo propósito. Também aumentou o número de casos de denúncias de negligência familiar com pessoas acima dos 65 anos. Durante todo o ano de 2017 foram 219. De janeiro a março deste ano, já foram registradas 80 denúncias.
As situações que envolvem apropriação de bens e rendimentos de idosos são ainda maiores. Em 2017, foram registrados 237 e, até março de 2018, contabilizados 76 casos. Dona Conceição de Maria, de 80 anos, foi vítima deste tipo de crime. A enfermeira Ana Carla explica que a idosa entregou uma procuração para uma parente próximo providenciar a reforma de sua casa. A pessoa, antes de se mudar para o Rio de Janeiro, simplesmente transferiu o imóvel de dona Conceição para o seu próprio nome e depois vendeu. Sem família, a senhora também ficou sem casa e está morando no asilo há 10 anos.
Fonte: Jacqueline Heluy – Agência Assembleia
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