BRASÍLIA – “A Lava Jato, sem mudanças mais profundas, é enxugar gelo”, disse Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da operação, em 26 de agosto de 2017. A plateia do 8º Congresso de Mercados Financeiro e de Capitais, formada por investidores e diretores de empresas multinacionais, aplaudiu o procurador com entusiasmo. Depois de um almoço farto, no Campos do Jordão Convention Center – que pertence ao prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB) –, subiu ao palco o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Naquela tarde, ele anunciaria pela primeira vez o prazo para execução do pacote de privatizações do governo Michel Temer (PMDB), previsto para o final de 2018. Ao final da palestra, os mesmos que ovacionaram Dallagnol bateram palmas para Meirelles.
O evento realizado em Campos do Jordão, interior paulista, é uma metáfora do efeito político e econômico das ações do Judiciário no Brasil desde 2014. Ao investigar ilegalidades nos contratos da Petrobras, a Lava Jato clamou por “mudanças profundas” e abriu margem para a venda do patrimônio público.
“As críticas da Lava Jato, reproduzidas pela grande mídia, são muito rasas. Os corruptos e corruptores devem ser punidos, mas isso não acontece hoje. Os delatores são perdoados e desfrutam de suas mansões, enquanto o trabalhador brasileiro é punido”, afirma Gerson Castellano, diretor do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Petroquímica do Estado do Paraná (Sindiquímica). “Associar empresa estatal à corrupção é típico de quem quer se apropriar desses bens. A tecnologia que a Petrobras desenvolveu, nenhuma empresa privada nunca conseguiu fazer”.
Roteiro conhecido
Dallagnol não foi o único jurista ou integrante da Lava Jato que aproveitou os holofotes para fazer discursos convenientes ao mercado de capitais. O então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, participou este ano do Fórum Econômico Mundial, na Suíça, e disse que a operação pode ajudar a atrair investimentos para o Brasil porque oferece “segurança jurídica” aos empresários. O juiz Sérgio Moro assumiu a mesma linha argumentativa em eventos do grupo empresarial Lide, que também pertence ao tucano João Doria. O partido do prefeito de São Paulo, PSDB, apoia o plano de privatização de Meirelles, conforme expresso pelo presidente de honra Fernando Henrique Cardoso: “O que puder privatizar, privatiza, porque não tem outro jeito”, disse FHC, em evento recente para debater a venda da Eletrobras.
O roteiro é semelhante ao da operação Mãos Limpas, na Itália – uma das inspirações da Lava Jato. As investigações não reduziram os índices de corrupção, mas deram origem a um governo autoritário que apostou na privatização como saída para a crise. A diferença é que, no Brasil, o assédio do capital estrangeiro é ainda maior, dado o potencial energético do país.
“O Afeganistão, por exemplo, tem um sítio mineral muito grande, mas não tem energia. Não é o nosso caso. Nossas reservas minerais e nossa capacidade energética são fantásticas”, explica o engenheiro Antonio Goulart, que trabalhou 40 anos no setor elétrico federal. “Nossas usinas são fruto de um investimento colossal do Estado brasileiro, e isso desgraçadamente está passando para as mãos do capital internacional”, conclui.
Talvez fosse melhor enxugar gelo.
De mão beijada
Desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff (PT), Temer anunciou a desestatização de 91 ativos de controle estatal – entre eles, 18 aeroportos, duas rodovias, quatro empresas e 16 concessões de energia. No último dia 27 de setembro, foram leiloadas quatro usinas da energia da Companhia Elétrica de Minas Gerais (Cemig): São Simão, Miranda, Jaguara e Volta Grande.
Gerson Castellano argumenta que o setor energético não pode ser tratado como mercadoria: “A energia é um direito básico da população. As famílias brasileiras precisam de energia para ter uma geladeira em casa, para usar aparelhos hospitalares… Quem vive nos rincões do Brasil sabe o quanto isso é importante”, ressalta. “O Estado investiu para que nós tivéssemos energia, e o que querem agora é entregar de mão beijada para a iniciativa privada, que vai se apropriar de um patrimônio da população para lucrar”.
Segundo entrevista do economista Luiz Gonzaga Belluzzo ao Brasil de Fato, as carências em infraestrutura só serão resolvidas com investimento estatal. “Não se pode esperar, a não ser através da iniciativa clara do setor público, que haja investimentos em tecnologia e inovação para desenvolver o país”, analisa. “O sistema de inovação exige um aporte muito grande de recursos, tanto humanos quanto financeiros. Porque a inovação tem um risco muito grande, e o Estado tem que mitigar esse risco”, finaliza.
Valor social
A venda da Eletrobras, maior grupo do setor elétrico na América Latina, é considerada uma das mais graves do plano de privatizações de Temer. Hoje, a União detém 63,2% das ações, e a receita líquida anual da empresa é equivalente a R$ 60,7 bilhões.
O engenheiro Antonio Goulart alerta para a consequência mais imediata da privatização da energia, que afetará todos os brasileiros: “O custo, que poderia ser muito mais barato sob controle popular, vai explodir”, explica. “Porque o valor social da energia é muito maior que o valor de venda. Quando falta energia, param as fábricas, para a cidade, para a vida. É por isso que um empresário pode chegar e colocar o preço que quiser, porque todo mundo vai ter que pagar”.
Petróleo na mira
No mesmo dia em que foram leiloadas as usinas da Cemig na bolsa de São Paulo, aconteceu a 14ª Rodada de Licitações de blocos para exploração de petróleo, totalizando uma área de quase 123 mil quilômetros quadrados.
Diretora da Federação Única dos Petroleiros (FUP), Cibele Vieira afirma que a entrega da camada pré-sal ao capital estrangeiro é um símbolo das atrocidades do governo Temer. “O pré-sal coloca o Brasil entre os três maiores países do mundo em reservas de petróleo. São 170 bilhões de barris, e cada novo poço que se fura, as surpresas sempre são maiores. Então, a tendência é que esse número possa crescer”, descreve. “Essas riquezas deveriam servir para prover os direitos sociais da população, e não para gerar lucro para poucos”.
Reação
Na última terça (3), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Plataforma Operária e Camponesa de Energia fizeram um ato político repleto de simbolismos – desde a data do protesto, que coincidiu com o aniversário de 64 anos da Petrobras.
A manifestação contra o desmonte do Estado começou em frente ao prédio da Eletrobras, no Rio de Janeiro, passou pela sede da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, e terminou em frente à Petrobras. Em Curitiba, “palco” da Lava Jato, o protesto aconteceu no calçadão da rua XV de Novembro, na região central da cidade.
Para Gerson Cervinski, da coordenação nacional do MAB, “o Brasil está perdendo todas as riquezas do seu controle”. Um dos principais argumentos dele, além da precarização da mão de obra, é o resultado desastroso da privatização da Vale do Rio Doce pelo governo FHC. A empresa foi vendida por R$ 3,3 bilhões em 1997, quando suas reservas minerais eram estimadas em mais de R$ 100 bilhões.
Dois intelectuais orgânicos
A privatização do setor energético brasileiro é resultado de uma atuação conjunta do presidente da Petrobras, Pedro Parente, e do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles – dois profissionais com inserção no mercado financeiro, em grandes corporações, e no setor público.
É o que o filósofo italiano Antonio Gramsci chamaria de “intelectuais orgânicos”: especialistas em seus ofícios, eles exercem funções organizativas dentro e fora do Estado, e isso lhes permite interferir no arranjo da sociedade civil para defender a classe social que representam. O conceito é complexo, mas a capacidade de transitar entre os interesse público e privado fica mais clara quando se conhece o currículo de cada um deles.
Pedro Parente foi chefe da Casa Civil durante o governo FHC, vice-presidente executivo da RBS, afiliada da Rede Globo, presidente da empresa de alimentos Bunge Brasil, e chefia o conselho de administração da Bolsa de Valores de São Paulo.
Henrique Meirelles foi presidente internacional do banco estadunidense BankBoston e presidente do Banco Central do Brasil. Até o ano passado, era presidente do Conselho de Administração da J&F Investimentos, grupo que controla a JBS – cujos executivos delataram o próprio presidente Michel Temer por corrupção na Lava Jato.
Por Daniel Giovanaz,
Fonte: Brasil de Fato (Edição: Ednubia Ghisi)
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