Economistas negros questionam mito da meritocracia na Faria Lima

SÃO PAULO – Sergio Luiz da Silva, 49, e Natalie Victal, 31, são economistas negros bem sucedidos no mercado financeiro em São Paulo.

Desde 2011, ele é sócio da AZ Quest, gestora de fundos de investimentos cujas carteiras somam R$ 18 bilhões. Antes, passou por instituições como GAP Asset Management, Citibank e Merrill Lynch.

Ela atua, desde 2019, como economista da Garde, empresa que administra R$ 4,5 bilhões em ativos. Após concluir o mestrado na PUC-Rio, em 2014, trabalhou em outras três empresas do setor: Kyros, Kondor e BlueLine.

O termo “a exceção da exceção” se encaixa na trajetória de profissionais como Sergio e Natalie no Brasil, onde, embora sejam 55,4% da população, só 11% dos negros com mais de 25 anos têm ensino superior, contra 24,9% de brancos.

Em 2019, entre todos os concluintes da graduação em economia que declararam a cor de pele, 32% eram negros –grupo que reúne pretos e pardos–, segundo dados compilados pela plataforma Quero Bolsa para a Folha. Os analistas da instituição também levantaram números referentes ao mercado de trabalho formal.

A análise mostra que 2 em cada 10 economistas que atuam com carteira assinada no país são negros, considerando o universo de profissionais cuja raça é informada.

A situação se repete em outras ocupações no mundo das finanças. O percentual de diretores de controles internos pretos e pardos é 18,9%. O de gerentes de grandes contas empresariais negros é ainda menor: 13,6%. Os números também revelam que, em média, pretos e pardos ganham bem menos do que seus pares brancos na área econômica.

Sergio e Natalie sabem que são exceção nesse universo que escancara o tamanho das barreiras estruturais à evolução de profissionais negros no país. Mas rechaçam o selo –que, afirmam, muitos já lhes quiseram atribuir– de exemplos de que os negros que batalham conseguem chegar lá. Não porque suas trajetórias tenham transcorrido sem esforço.

“Meu pai e minha mãe não mencionavam a questão racial, mas falavam que a gente tinha de se provar, de estudar mais, de entregar o melhor. Era uma exigência por excelência que eu não via na casa dos meus colegas”, diz Natalie.

“Sempre tive uma preocupação absurda em ter de desempenhar tudo muito bem, um compromisso enorme de nunca deixar a bola cair”, afirma Sergio.

Apesar da pressão que descrevem, os dois ressaltam que foram as oportunidades que tiveram – inacessíveis a muitas crianças negras brasileiras– que lhes permitiram ser bem sucedidos profissionalmente. “Vivi coisas que me pareceram agressivas, mas quando vejo as restrições que pessoas negras passam no Brasil, sei quanta sorte tive”, conta ele.

“Coloca-se muito foco no mérito, talvez por uma questão de ego. O mérito importa, mas menos do que as oportunidades”, diz o gestor da AZ Quest.

Sergio nasceu em Belo Horizonte (Minas Gerais). Quando Nilza, sua mãe, engravidou, era muito jovem e sofreu um duplo golpe: se afastou da família e do pai do economista, que não lhe deram apoio.

Para sobreviver e criar Sergio, ela, que é analfabeta, foi trabalhar como doméstica de um casal –Alice e Humberto– que estava na faixa dos 40 anos e não tinha filhos.

Um dia, após quebrar um copo, Nilza começou a chorar. Alice perguntou o motivo do pranto e ela desabafou. Explicou que tinha medo de perder o emprego pois sustentava o filho sozinha.

Comovida, Alice levou Nilza e Sergio para viver com ela e o marido, que era executivo de uma multinacional. Quando o casal voltou para o Rio de Janeiro, onde morava antes, Sergio e sua mãe também foram.

Os quatro formavam uma família atípica: Sergio chamava Nilza de mãe, Alice de dinda e Humberto de pai. Depois que Nilza se casou e deixou de trabalhar para o casal, Sergio continuou vivendo com os pais adotivos, e as duas famílias se mantiveram muito próximas. “Eu percebia contrastes entre quem eu era e a realidade em que vivia”, diz ele.

Alice e Humberto deram a Sergio tudo o que uma família de classe alta proporciona aos filhos no Brasil. Ele frequentou escola e faculdade privadas de alta qualidade, viajou e fez intercâmbio fora do país. Mas as discriminações por sua cor da pele eram frequentes.

Logo no início da carreira de Sergio, um dos chefes no banco de investimentos onde ele estagiava o aconselhou a buscar outro trabalho. Ele explicou ao então jovem economista que havia tentado levá-lo para a tesouraria [setor que administra os recursos próprios das instituições], mas que um dos sócios vetou a escolha dizendo que “lugar de crioulo era no backoffice [área administrativa]”.

Embora episódios de discriminação explícita tenham diminuído, Sergio ainda vive situações em que é tratado de forma diferente por sua cor de pele.

“Agora na pandemia, fui trabalhar um dia presencialmente de jeans, tênis e máscara e o segurança me abordou para me perguntar aonde eu ia”, diz.

Para Sergio, o racismo não o impediu de decolar profissionalmente graças à blindagem educacional e emocional que teve ao longo da vida.

Dados e pesquisas indicam que a percepção do executivo reflete bem a realidade brasileira. A fatia de brasileiros pretos e pardos que não sabe ler nem escrever é de 8,9%.
Entre brancos, esse percentual cai para 3,6%.

A escola deveria impedir que essa desigualdade se perpetuasse entre diferentes gerações. Mas, embora o peso da herança de iniquidade racial esteja caindo, ele ainda é muito elevada.

Estudo dos economistas Rodrigo Mahlmeister, Sergio Guimarães Ferreira, Fernando Veloso, Naercio Menezes-Filho e Bruno Kawaoka Komatsu mostra que a chance de um negro brasileiro chegar à vida adulta com a mesma escolaridade do pai, se este for analfabeto, é de 24%. Entre brancos, a probabilidade cai para 11,7%.

O fato de Nilza só saber escrever o próprio nome não impediu Sergio de estudar por mais de 16 anos, feito alcançado por apenas 2,3% dos negros na mesma situação dele.

Mas, segundo o economista, a passagem dos anos tem lhe trazido consciência crescente sobre os privilégios que moldaram seu destino. “Além da educação, meus pais estavam sempre presentes”.

Preocupado em como contribuir para que a elite enxergue que todos sofrem as consequências da falta de equidade, Sergio passou a estudar sobre racismo estrutural.

Um dos conceitos que descobriu foi o de lugar de fala, que se refere à observância da relação entre um tema e quem emite opinião sobre ele.

Por isso, ao ser procurado pela Folha para contar sua trajetória, Sergio aceitou o convite, mas propôs que a reportagem também ouvisse uma economista negra bem sucedida.

Embora Sergio e Natalie não se conheçam, ele sugeriu o nome dela porque viu uma entrevista da economista à InfoMoney. “Chamou a minha atenção porque não me lembrava de outras economistas negras no mercado”.

A história de Sergio e Natalie diferem em alguns pontos, mas suas opiniões sobre a questão racial no Brasil coincidem. Natalie conta que a grande heroína de sua trajetória bem sucedida é sua avó paterna. Negra e de baixa renda, ela sempre enxergou a importância de investir na educação dos filhos.

“Das famílias de nossa rua, ela foi a única a tomar a decisão de manter os filhos estudando depois do ensino médio”, diz Natalie, que cresceu em São Gonçalo (Rio de Janeiro).

O pai de Natalie cursou engenharia e sua mãe –também negra, de uma família com melhor condição financeira– estudou psicologia. “Sou fruto de duas pessoas que, na década de 80, eram negros privilegiados”.

Além de poder se dedicar aos estudos, Natalie diz que o exemplo dos pais a fizeram acreditar que podia sonhar alto, a despeito de episódios de discriminação na escola. “Representatividade importa muito. Um problema comum entre os negros é não saber os caminhos que podem seguir”, diz.

Natalie também tem pensado mais nas barreiras impostas pelo racismo estrutural e em como rompê-las.

Uma de suas ideias é desenvolver um projeto que incentive alunos negros a prestar o exame da Anpec. Os centros de pós-graduação em economia, representados pela instituição, selecionam alunos de mestrado com base no desempenho que eles têm nessa prova.

Natalie fez graduação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e mestrado na PUC-Rio, duas instituições reputadas. “Sem dúvida, ter passado por esses filtros me ajudaram muito. Há mais negros chegando à universidade no país, mas me parece que poucos conseguem seguir estudando depois”, diz.

Como Sergio, Natalie acha que o foco excessivo em mérito é um erro. “Deveríamos estar preocupados com oportunidades iguais desde a primeira infância”.

BNC Geral

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