NATAL – José Antonio Spinelli é um brilhante cientista político, que alia o rigor das suas análises sociológicas à sensibilidade literária. É professor de Ciência Política na UFRN. Estuda o pensamento social brasileiro, autoritarismo e ditadura. Fora da sua atividade acadêmica, ele se tornou – contra a sua vontade – personagem do romance “A mais longa duração da juventude”, em páginas que preveem e falam do futuro de uma geração. Mas nestes dias de abalo na cidade onde trabalha, mora e vive, Spinelli reflete sobre os abalos terroristas em Natal. Vamos à entrevista.
Como está agora Natal?
Spinelli – Continua sob ataque. Muitas atividades paralisadas. Até a estação de trens foi atacada. O comércio funcionando com restrições. Repartições públicas aderindo ao trabalho remoto. Aulas paralisadas. Transporte público precário; os empresários com medo de colocar os ônibus nas ruas. Até carro de lixo foi atacado. Noticias ainda de ônibus incendiados. Cidades do interior como Mossoró, Parnamirim, Ceará-Mirim (estas duas últimas, na região metropolitana), Macaíba, Caicó (esta no sertão) também estão sofrendo ataques.
Fala-se até em “guerra civil”. Tem parlamentar (de direita) pedindo a Lula a intervenção das Forças Armadas, como o senador Styvenson Valentim (Podemos), capitão da PM. Ele pediu a Lula uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) – a intervenção das Forças Armadas. Outros políticos de direita, no Congresso e na Assembleia Estadual, estão atacando o governo Fátima Bezerra. Falam até em impeachment da governadora. Os deputados estaduais José Dias e Gustavo Carvalho, ambos do PSDB e deputado estadual Luiz Eduardo, do Solidariedade – pedem intervenção das Forças Armadas.
Há um outro dado importante: no dia dos ataques estava sendo julgado no TSE o mandato do deputado estadual Wendel Lagartixa, policial militar. O ministro Lewandowski deu parecer pela perda do mandato.
O deputado Lagartixa é apontado como matador de aluguel, membro de grupos de extermínio. Em entrevista na imprensa, na véspera dos ataques, ele antecipou o movimento e pediu que o governo estadual desse uma “salve”, oferecendo-se para liderar esse movimento, para entrar em favelas e exterminar os bandidos. O julgamento de Lagartixa foi suspenso por um pedido de vista de um dos ministros, quando o placar era de 3 x 1 contra ele, incluindo o voto do relator Lewandowski.
Mas esses políticos não são a origem dos ataques. Eles aproveitam a onda que se formou, para acusar de incompetência a governadora.
Quais origens dos ataques?
Spinelli – Os executores imediatos são membros de facções criminosas, particularmente a facção conhecida como Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte, uma dissidência do PCC. Não se descarta a participação de outras facções, a exemplo do próprio PCC, que apesar de relativamente enfraquecido na capital, continua ativo.
Houve também manifestações de mulheres de presos, que ocuparam avenidas movimentadas, interromperam o trânsito e enfrentaram a polícia
Há questões de fundo que são importantes: em primeiro lugar, a ação coordenada dos órgãos de segurança estaduais que têm atuado bastante para desarticular o crime organizado e já prendeu lideranças importantes (um desses líderes morreu em confronto com a polícia, quando estava refugiado na Paraíba). O motivo imediato parecer ter sido a transferência do principal líder do Sindicato do Crime para uma prisão federal de segurança máxima.
Os criminosos têm como alvo principal prédios públicos (em particular os ligados aos órgãos de segurança), escolas, e outras agências públicas e transportes de massa, particularmente ônibus urbanos que têm sido sistematicamente incendiados. Isso cria um clima de terror e pânico e leva à paralisação de todas as atividades econômicas e dos órgãos públicos, inclusive universidades e escolas públicas e privadas. O efeito é gigantesco. Há uma sensação de medo, as pessoas se recolhem em casa.
Mas esses eventos não são novidade no Rio Grande do Norte. Em 2017, houve um massacre promovido pelo PCC contra o Sindicato do Crime no presídio estadual de Alcaçuz.
Os presidiários torturados estariam na origem dos ataques agora?
Spinelli – Sim, as condições dos presídios são as que os bandidos e as mulheres dos bandidos em protesto público também falaram. Mas não são apenas eles que falam. Ums comissão independente, um órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos, há alguns anos atrás, fez uma investigação rigorosa e apontou esses problemas enfrentados cotidianamente pelos presidiários: tortura, comida estragada, proibição de visitas íntimas, doenças por contagio devido às condições insalubres (tuberculose, micoses etc.), enfim, toda uma situação que significa desrespeito aos direitos humanos dos presos e dificultam sua recuperação e consequente ressocialização.
Estudiosos independentes e jornalistas vêm apontados esses problemas há bastante tempo. Trata-se de um pano de fundo importante e criam o ambiente favorável a essas manifestações criminosas.
Mas como uma governadora de esquerda, da resistência democrática, permite continuar uma situação dessas?
Spinelli – Essa é uma pergunta que inquieta a todos que de alguma maneira viram na ascensão da governadora um avanço das pautas progressistas. O que agrava isso é que a governadora está no segundo mandato. Ela deu bastante atenção à área de segurança, uma área sensível e que sempre se constitui um desafio para a esquerda no poder.
Ela investiu bastante para modernizar tanto a Polícia Militar como a Polícia Civil. Fez concursos, ampliou os quadros, ofereceu cursos de aperfeiçoamento, adquiriu equipamentos modernos, enfim, dotou as polícias de condições razoáveis para garantir a segurança da população e combater o crime, particularmente o organizado. Mas não resolveu alguns problemas estruturais, sendo um desses as condições dos presídios públicos, realmente muito precárias.
Há ainda uma outra questão: as torturas e maus-tratos aos apenados estão nas raízes da nossa tradição (no Brasil), herança do autoritarismo e em tempos recentes da ditadura militar-empresarial. Há uma mentalidade arraigada (e não é só entre policiais), está presente no imaginário da população, de que “bandidos” não têm direitos humanos. Por ser uma mentalidade que está disseminada na sociedade civil, seu enfrentamento exige mais do que boa vontade ou mesmo decisão política. Para dar um exemplo: os noticiários e programas que abordam a questão da segurança disseminam isso com “naturalidade” – até por encontrar receptividade na população.
Então é preciso investir na formação do policial, no currículo dessas escolas, investir de forma permanente, formar uma consciência crítica, democrática ~ não é trabalho para poucos anos. A governadora tem consciência disso e está convicta da sua necessidade. Mas só o trabalho de ganhar a confiança das lideranças do aparato policial de segurança já é uma tarefa hercúlea.
Esta situação de Natal pode se alastrar para outras cidades brasileiras?
Spinelli – Mas isso já está disseminado em outras cidades do país. O modus operandi dessas facções criminosas foi importado do Sudeste… O problema é nacional, vem da nossa herança colonial, do escravismo, do autoritarismo político e social, das dificuldades que a democracia encontra para se consolidar no país. O nosso não fez sequer uma “revolução burguesa” consequente, que garantisse direitos de participação democrática aos “de baixo”, como dizia Florestan Fernandes. Tivemos uma “revolução passiva” (Gramsci, Werneck Vianna) secular, pontilhadas de golpes de Estado, contrarrevoluções (1937, 1964, 1968…). Ao invés de “democracia burguesa”, o que tem se consolidado é uma “autocracia burguesa” (mais uma vez, Florestan).
BNC Brasil