Com cadeias lotadas e pandemia, magistrados reveem reincidência para crimes insignificantes

Em São Paulo, um jovem foi condenado a quatro meses de prisão por furtar chocolates de uma loja de conveniências. No Paraná, outro homem tentou levar três camisetas de R$ 12 sem pagar, foi detido e recebeu sentença de um ano de cadeia. No Rio, um idoso em condição de rua, com fome, roubou comida de uma loja e parou atrás das grades em meio à pandemia de Covid-19.

O cenário se repete no Judiciário brasileiro, apesar de esses delitos poderem ser enquadrados no chamado princípio da insignificância, que busca não punir condutas com resultados irrelevantes dos pontos de vista jurídico e patrimonial.

Com cadeias lotadas, a tendência começa a mudar. Na semana passada, o STJ (Tribunal de Justiça) manteve decisão do ministro Felix Fischer que absolveu um homem condenado por furtar três xampus, mesmo com o sujeito sendo reincidente no crime de roubo. A sentença do STJ, segundo juristas, vai na contramão do que costumam decidir os tribunais em condenações do tipo, como citou o magistrado em sua decisão monocrática.

“No entendimento do STJ, os maus antecedentes, via de regra, afastam a incidência do princípio da bagatela [como também é chamado o princípio da insignificância]. Urge ressaltar, contudo, que tais vetores não devem ser analisados de forma isolada, porquanto não constituem diretrizes absolutas”, escreveu Felix Fischer.

Fischer lista quatro requisitos para reconhecer a insignificância: minima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Sua decisão abre margem para que outros crimes menores com réus não primários possam escapar da condenação, em um momento que os tribunais de instâncias superiores contam com 1.501 manifestações enviadas apenas até setembro de 2020 sobre o tema da insignificância

Apesar de não existir levantamento consolidado dos últimos anos, é possível afirmar que, na década, explodiu o número de pedidos de insignificância nos tribunais superiores. Um estudo feito em 2011 por pesquisadores do departamento de direito penal da USP mostrou que, na época, os pedidos anuais chegavam a 38 no STJ e STF – menos de 3% dos 1.463 registrados em nove meses de 2020.

Os casos de delitos insignificantes em posse dos tribunais superiores são variados. Mas, segundo juristas ouvidos pela Folha, o tema da reincidência é uma questão central.

A maioria dos magistrados entende que os réus reincidentes não têm direito ao reconhecimento do princípio. Por outro lado, quase todos os casos são relativos a pessoas em situação de vulnerabilidade extrema, principalmente quando envolvem furto de produtos de higiene e comida.

“É muito comum o que os juristas chamam de furto para se alimentar. Normalmente, esses delitos estão ligados à vulnerabilidade social e só aumentam, pois não se desenvolve nenhuma política pública para essas pessoas”, aponta o coordenador de defesa criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Emanuel Queiroz.

No começo da pandemia, por exemplo, a defensoria do Rio enfrentou o caso de um idoso preso pelo furto de R$ 35 reais em comida. Na semana passada, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro foi ao Supremo pedir o fim de uma ação que condena um homem a um ano e seis meses de reclusão pelo furto de um xampu e um condicionador no valor conjunto de R$ 16,99, imediatamente devolvidos.

Queiroz questiona o papel do Estado em casos do tipo, já que um preso tem custo mensal de R$ 3.000 aos cofres públicos. Pesa ainda a falta de políticas públicas fortes para reintegrar condenados mais vulneráveis uma vez cumprida a pena.

“Não se aplaude a conduta de quem pega qualquer coisa, mas qual o valor social disso? A que se presta a aplicação da lei penal? Será que vai ter algum resultado? Ou só o aprofundamento da desigualdade e destruição de um cidadão?”, indaga.

Entre outros casos do tipo que chegaram ao STJ e ao STF, estão o de um homem condenado a quase cinco anos de prisão por ter roubado R$ 8, o de um rapaz sentenciado a um ano de cadeia pelo roubo de um botijão de gás do irmão, e um réu que pegou pena de quatro meses por furtar 5,8 kg de carne.

“Não faz sentido o Estado se valer da sua percepção para apurar esse tipo de conduta, pois não tem relevância jurídica”, diz a advogada criminalista Daniella Meggiolaro, vice-presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e presidente da comissão de direito penal da OAB-SP.

“A reincidência não pode interferir no reconhecimento da insignificância. Se o crime não existe e o Judiciário entende que é atípico, se ele for cometido mais de uma vez é indiferente, já que não é crime.”

A subprocuradora geral da República Luiza Cristina Frischeisen, membro do Ministério Público Federal, aponta uma tendência dos tribunais superiores de desconsiderar a reincidência em delitos insiginificantes. “Está existindo mais consciência. Acho que tendem a diminuir [as condenações], temos falado muito sobre isso e está gerando reflexão”, diz.

Na última sexta (15), dia que conversou com a reportagem, a subprocuradora atuou em dois casos em que os réus haviam furtado doces. Em um deles, foi pedido habeas corpus à Suprema Corte por um reincidente já condenado a quatro meses de reclusão pelo furto de 46 chocolates de uma loja (a mercadoria foi devolvida).

Ela diz acreditar que, na medida que a reincidência for sendo afastada, a tendência vai se consolidar e menos denúncias vão existir. “Vejo uma análise mais profunda desses casos, tanto do STJ quanto do STF, por conta da quantidade de habeas corpus. Tem que punir o fato, não a pessoa.”

Em março desse ano, o ministro Gilmar Mendes, do STF, aplicou o princípio da insignificância a um reincidente por um furto de R$ 25. Na decisão, ele criticou que o processo tenha movimentado quatro instâncias do Judiciário.

A opinião é compartilhada por outros ministros, que costumam reclamar do excesso de hebeas corpus que chegam às últimas instâncias.

Levantamento do Sistema Prisional em Números, enviado à Folha de S.Paulo pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), aponta que as prisões brasileiras estão com as taxas de ocupação em 161,60%. Ou seja: há 721.363 detentos em um sistema que comporta 446.389. Na região Centro-Oeste, a ocupação chega ao dobro da capacidade.

Metade dessa população carcerária, lembra diz o advogado criminalista e professor de direito da USP Pierpaolo Cruz Bottini, está ali em prisão preventiva.

“O que não olhamos é a discrepância sobre o que é a insignificância. A maior parte dos crimes comuns, quando passam de R$ 200 raramente têm a insignificância destacada”, diz. Ele sublinha uma discrepância do sistema: “Em crimes tributários, o padrão da jurisprudência é R$ 20 mil”.

Fonte: Folhaexpress

BNC Brasil

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