SÃO PAULO – Fazer um teste de DNA e descobrir em qual parte da África nasceram os seus ancestrais. Essa é uma das experiências que podem ser vivenciadas por pessoas negras que buscam os serviços de agências de viagens especializadas em atender esse público.
As empresas têm serviços não só para pessoas negras. Entretanto, o leque de produtos vai além de pacotes de viagens com passeios pelos pontos turísticos mais tradicionais. As agências têm também roteiros chamados de experiências afrocentradas.
Nesse caso, há visitas a locais importantes para a história e para a cultura negra, além da preferência por hotéis e restaurantes comandados por empresários negros.
É o caso da Brafrika, que já atende cinco estados no Brasil, três países na Europa e também leva seus clientes para três nações da África. A ideia de elaborar um projeto com esse tipo de enfoque começou há quase dois anos, mas a pandemia do novo coronavírus precipitou a ideia de incluir a descoberta das origens ancestrais no pacote da agência.
“A ideia surgiu desde o começo. Eu queria que as pessoas fizessem o teste de DNA, descobrissem de onde era sua ancestralidade e que a gente fosse viajar por esses lugares”, diz Bia Moremi, idealizadora da empresa. “Mas depois percebi que seria um pouco mais difícil implantar, aí eu engavetei essa parte do projeto.”
Ela conta que, quando chegou a pandemia, foi “aquele momento de desolação”. “Eu senti como se o chão tivesse saído da minha frente, foi terrível”, diz.
A empresária, formada em química, não tirou a ideia de oferecer DNA de sua cabeça, mas pegou os testes que já eram ofertados por laboratório e transformou a descoberta em um evento. Com o turismo mundial entrando em uma queda histórica, por causa do vírus, ela recuperou a proposta. “Procurei um laboratório que faz esse tipo de teste e propus uma parceria.” Ela mesma já fez o teste e descobriu ter raízes na Nigéria.
Além do resultado, o pacote inclui um jantar para duas pessoas com a comida típica da região identificada no DNA, um álbum de fotos de resgate ancestral da área de origem e uma pulseira de metal gravada com o nome da terra natal africana, além de consultoria para aprender sobre as influências estéticas do local.
O serviço está disponível desde junho e ajudou a manter a agência neste ano.
Apesar da pandemia, Moremi já planeja retomar roteiros no ano que vem. “Até hoje, eu faço tudo com o meu próprio dinheiro”, afirma. “Eu sou investidora de mim mesma.”
Ela conta que, enquanto trabalhava como funcionária, tirava do próprio salário o recurso para investir no negócio. “Eu me preparei, fiz um colchãozinho, porque eu sabia que precisava ter um colchão de pelo menos um ano para poder me dedicar 100% à empresa”, afirma.
Na avaliação de Moremi, a especialização é uma tendência para diversos setores, inclusive para o turismo. “O que aconteceu com o mercado da beleza é algo que a gente acredita, fortemente, que pode acontecer com o mercado de turismo”, afirma.
“A gente começou a exigir produtos que fossem elaborados pensando na gente e, cada vez mais, o que a gente vê é que, quando você consome um produto que é feito minimamente focado em você, a sua experiência é diferente. É a mesma coisa com o turismo.”
Segundo ela, há uma nova classe média, e as pessoas estão prontas para essa experiência. “Dizem: ‘Olha, legal, fui para a Europa, fui para os EUA, mas eu gostaria de entender melhor a minha história’, e não tinha uma empresa que conseguisse abordar o continente africano de maneira urbana e contemporânea, sem ser estereotipada.”
Há um pouco mais de tempo no mercado, a Diáspora Black começou como um serviço de hospedagem. A ideia da empresa era intermediar o contato entre os clientes e os locais de estadia. Depois a empresa passou a oferecer experiências e viagens.
“Neste ano, em razão da pandemia, nós vimos todo o setor de turismo sendo congelado. Abrimos uma outra plataforma com atividades online, com palestras, terapias, vivências, de diferentes temas ligados à cultura negra ou com profissionais negros”, diz Carlos Humberto da Silva, 41, representante da empresa que já atua no mercado há três anos e também fica em São Paulo.
Silva enfatiza, entretanto, que a agência não atende somente pessoas negras e que o modelo de experiências afrocentradas pode ser vivenciado por qualquer pessoa. “A nossa missão é criar pontes com serviços qualificados para negras e negros, mas não somente para a população negra.”
Em sua avaliação, no turismo existe uma tendência de procura por experiências, e não apenas a visita a pontos turísticos tradicionais.
“Não estamos focados nas pessoas negras, mas nós tratamos os consumidores negros de maneira qualificada e criamos pontes entre todos os que querem vivenciar”, diz.
Ele afirma que este tipo de abordagem afrocentrada é importante para dar dimensão a coisas que “não aprendemos nem na própria universidade ou na escola”.
“Nós também ajudamos em uma inclusão significativa de empreendedores negros e profissionais negros do setor de turismo.”
Guilherme Soares Dias, 35, sentia falta de um roteiro que indicasse locais em que pudesse conhecer mais sobre a história da população negra.
“A gente percebe que muitas pessoas falam de viagem, mas poucas falando sobre essa perspectiva da negritude”, afirma Dias, sócio da BlackBird, outra agência que atua com turismo especializado.
“A gente fala dos aspectos ruins também, de como é para uma pessoa negra viajar, sobre a questão do racismo. Mas, principalmente, a gente quer inspirar para que as pessoas possam viajar”, diz.
“A gente quer dizer que Palmares, em Alagoas, [cidade na qual ficava o quilombo dos Palmares], é um lugar a que as pessoas precisam ir –e isso não está dito em nenhum outro lugar”, afirma.
Ele conta que os roteiros incluem caminhadas pela cidade de São Paulo, visitas à Pequena África, na região portuária do Rio de Janeiro –local que reuniu diversos grupos de ex-escravos–, bem como passeios para contar a história da cultura negra em Curitiba, além de roteiros em Salvador.
“As empresas brasileiras ainda não entenderam o potencial desse turismo que retrata a história de mais de 56% da população e pode ser feito por qualquer pessoa”, afirma.
Ele lembra que pacotes com esse enfoque são comuns nos Estados Unidos, onde grandes agências que fazem experiências para afroamericanos movimentam bilhões de dólares.
“Eu acredito que isso vai ocorrer no Brasil nos próximos dez anos”, afirma Dias.
Fonte: Folhaexpress
BNC Brasil